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Archive for the ‘Festival do Rio’ Category

Em algum lugar, uma Ferrari corre por uma estrada e some momentaneamente de vista enquanto faz uma curva. Ressurge em velocidade, avançando pela pista, só para sair de quadro segundos depois. Ainda ouvimos por alguns segundos o barulho potente do seu motor ir sumindo na distância.

Mas o avanço é apenas ilusório: pouco antes de sumir completamente, o ronco do motor volta a aumentar, e a Ferrari entra em quadro novamente, repetindo seu percurso. Faz a curva e mais uma vez vai embora. O carro faz essa volta três vezes antes de frear repentinamente. Após breve pausa, um homem sai do veículo e olha em volta.

 

Stephen Dorff, a.k.a. NOT-Bill-Murray, & Elle Fanning, a.k.a. Better-than-her-sister

O plano inicial de Somewhere é a síntese mais perfeita (porque simples – ou ainda, simplista) do mais recente filme de Sofia Coppola – chamá-lo de “novo” seria assumir que há algo nesse filme que o diferencia do trabalho anterior da cineasta, o que não me parece verdade. E é justamente nessa característica que enxergo o grande problema do filme. A análise mais simplista, a metáfora mais batida, a maneira mais preguiçosa de caracterizar o filme é também a mais precisa: Somewhere dá voltas e voltas e não sai do lugar.

Há duas questões que decorrem dessa afirmação. A primeira é a de que não há, a priori, nenhum problema intrínseco nessa maneira de se abordar as coisas. Recusar a tradicionalidade de uma dramaturgia de “superação”, de uma trajetória de personagem na qual o protagonista encontra dificuldades e sai dessa jornada como uma pessoa melhor do que quando começou – tudo isso pode ser bastante interessante, e o que não falta são exemplos de filmes fantásticos que partam dessa premissa cíclica (de Van Sant a Nolan). A própria Sofia Coppola fez, a partir dessa idéia, o bem mais interessante e bem-sucedido Encontros e Desencontros. Acontece que, nese Somewhere, o “vazio existencial do ser humano” ou qualquer baboseira do tipo só parece interessar a diretora como um fim em si mesmo; quero dizer, ela filma o tédio e a solidão só pra sublinhar o óbvio: que eles são entediantes e solitários. Como disse um amigo, essa história de que “o filme é de plástico porque a vida do cara é de plástico” não cola. Sendo, me parece, um arremedo mal-feito de Encontros e Desencontros, Somewhere quase nunca consegue infundir um senso de melancolia, nem de carinho, nem de doçura nesse mundo superficial que filma, seguindo à risca o clichê associado às estrelas de Hollywood.

O segundo ponto me parece ainda mais grave: Sofia Coppola parece de fato acreditar que está fazendo algo mais, que desse vazio está conseguindo extrair algum tipo de lição moral. O final do filme não passa de uma “tomada de consciência” do protagonista, que resolve deixar sua vida fútil pra trás e sair para enfrentar o mundo desconhecido. Soa brega, metáfora rasteira, e realmente assim o é. Que outra coisa enxergar no plano final, em que o protagonista abandona o carro no meio da estrada e sai andando sozinho – ainda mais considerando que o plano inicial é aquele que descrevi lá em cima?

Há um par de críticas antagônicas na Contracampo cujas leituras se aproximam da que fiz. Calac Nogueira reconhece a repetição de temas já abordados pela diretora, mas vê na “simplicidade” deste aqui algum interesse; crê que Somewhere “opera uma depuração formal deste sentimento (a melancolia), numa tentativa de torná-lo mais palpável por meio de uma dinâmica rigorosa de cena e de montagem, como se estivéssemos diante de uma exposição temática (ainda que também narrativa) de quadros”. E que, por causa dessa operação, o filme não é um passo atrás, não trilha novamente terreno já pisado pela diretora – mas que, ao contrário, consegue ir ao essencial de um sentimento que já estava presente em seus outros filmes.

Entretanto, não me parece que Coppola tenha ido à essência de nada, mas ficado apenas na superfície – ela, justamente, não consegue infundir no mormaço do cara a melancolia mais profunda que ali parece existir. E mais: essa tentativa de tornar a melancolia mais palpável por uma mise-en-scene rigorosa e o caralho a quatro soou, pra mim, como um exercício (vazio) de estilo. A mim não interessa que uma diretora, por mais talentosa que seja, use sua capacidade de encenação, posicionamento de câmera e uso da música pra plastificar aquilo que poderia ser interessante. Dito em termos simples, quase chulos: não vejo interesse num filme que consegue tirar a pungência de ‘My Hero’, do Foo Fighters, e a sensualidade de duas gêmeas loiras gostosas fazendo pole-dancing ao juntar os dois pra produzir um efeito ridículo. A mão pesou na caricaturização e qualquer senso de melancolia se perdeu. Esse procedimento funciona na gravação do comercial do Bill Murray porque, porra, it’s Bill fuckin’ Murray, cujo rosto transmite toda a melancolia do mundo quando quer. Por mais que Stephen Dorff não seja mau ator, ele não consegue segurar a cena, e o que era pra ser melancólico se torna apenas caricato.

Leonardo Levis faz uma crítica que se alinha mais com o que eu senti no filme: “Coppola faz um filme para dizer não às máscaras que compõem seu mundo, mas não sabe filmar outra coisa do que essas próprias máscaras”. E se há algo que me incomoda profundamente em Somewhere é isso: sinto nele um desejo profundo de tentar entender o que há por trás dessas máscaras, mas nunca sai da superfície. O par de palavras-chave é esse mesmo: um desejo de profundidade, num filme que nunca consegue deixar de ser superficial.

"There is a time when we all fail..."

Acho que aqui vale falar um pouco das minhas impressões com os filmes anteriores da cineasta. Gosto demais d’As Virgens Suicidas, justamente por ser um filme que reconhece sua incapacidade de entender seus personagens de maneira mais profunda. Desde o início, as garotas são enigmas que nós não conseguimos decifrar – e aqui o uso do pronome é preciso, porque é com os garotos que as admiram que se alinha o ponto de vista do filme. Nós só temos pequenos indícios, peças que não são suficientes pra montar o quebra-cabeça (não à toa citei o Van Sant lá em cima, já que seu Elefante me parece um dos melhores filmes a trabalhar essa idéia). A força de As Virgens Suicidas está em perceber que há algo – aí sim – profundamente hipnótico e belo em enigmas desse tipo.

Encontros e Desencontros é um filme-problema pra mim, porque sempre senti que deveria gostar mais dele do que gosto. Aliás, sempre quis gostar mais dele do que gosto. Em retrospecto, sempre achei que o filme fosse melhor do que na minha reação inicial a ele. Mas, nas duas vezes em que voltei a vê-lo, tive aquele sentimento de underwhelming; como se ainda faltasse algo pra que ele realmente me atingisse com pungência. Ainda assim, gosto de diversos momentos, e realmente sinto que há uma profundidade no relacionamento entre Bill Murray e Scarlett Johansson. Mérito dos atores, talvez, que são profundamente carismáticos; de qualquer forma, existe ali algo impalpável que foge a uma definição precisa (isso vindo de alguém que viu no famoso sussurro do Bill Murray no ouvido da Scarlett a mão pesada da diretora – um momento absolutamente genial e sensível, é verdade, mas ainda assim reconheço essa genialidade de maneira mais analítica que sensorial). E mesmo ali há o reconhecimento de que algo foge da esfera do definível – ou do representável, sei lá. Fato é que o filme não tenta, no final das contas, fingir que compreendeu o que os personagens são e sentem; ele não pensa que “desvendou o mistério”. E também não há, nisso, a busca de uma redenção propriamente dita – o filme é o encontro dos dois, e só; em nenhum momento se coloca isso como uma questão moral, como algo que apenas serve de escada para os personagens se tornarem “pessoas melhores” ou o que quer que seja – e, pra mim, isso é um grande mérito. [nota cerca de um mês depois de ter escrito o texto original: esses dias peguei o final de Encontros e Desencontros passando em algum canal da net, e pela primeira vez aquele sussurro final e o plano do Bill Murray no taxi me pegaram de uma maneira mais pungente. Talvez por ter visto a cena meio no susto, meio na surpresa; talvez justamente por vê-la descolada do resto, por si mesma. Ainda que essa sensação de descolamento, de algo separado do resto e fechado em si mesmo, esteja tentativamente presente em todo o filme, ela nunca se fez tão presente nas vezes em que o vi em toda a sua duração].

Não vi Maria Antonieta, mas só por se configurar como algum tipo de recriação de uma personagem histórica – e, ao que me parece, sem nenhuma tentativa de fidelidade a como “ela realmente era” ou qualquer coisa assim -, já parece fugir dessa tentativa de desvendar “a melancolia profunda”, de tentar dar conta de tudo o que mostra. Em Somewhere, percebe-se a tentativa de criação de um efeito cumulativo das cenas de tédio do protagonista; ainda que elas sejam razoavelmente desconectadas de uma das outras e de uma narrativa maior (que mal-e-mal se estrutura em torno do tempo que Dorff passa com sua filha, interpretada por Elle Fanning, irmã da Dakota), a impressão que fica é que esses momentos deveriam impulsionar a mudança de vida do personagem. E ainda assim a resolução final soa um tanto fora de lugar, como que forçada por uma necessidade de Coppola de dar esse desfecho ao personagem – e a si mesma, quem sabe; talvez seja ela quem queira escapar desse universo fechado e artificial. Simplesmente soa falso demais. E, digo outra vez, se era essa a intenção – fazer um filme de plástico sobre uma vida de plástico, no qual até mesmo a conclusão redentora não resulta de uma motivação mais profunda; Calac Nogueira fala de “uma imagem desencantada, direta, sem fundo, sem mistério – e melancólica exatamente por esta falta de mistério” -… bom, é o que eu digo: não vejo interesse algum nisso.

O que a mim fica claro é a extrema habilidade de Coppola em compor pequenos momentos, criar esquetes, fazer cenas que se sustentam por si mesmas. Isso fica mais claro, aqui, nos momentos que envolvem Elle Fanning – num filme tão morto, é impressionante como a garota consegue trazer alguma vivacidade à tela. Não sei se é a força do carisma da menina ou se é fruto desse rigor e capacidade de Sofia Coppola de criar pequenos momentos de encantamento em meio ao mormaço – mas é ponto pacífico que pelo menos em alguns pontos ela acertou a mão – como já o disseram os críticos da Contracampo e Fábio Andrade, na Cinética. Aliás, eu já tinha escrito esse texto algum tempo antes de a crítica dele ser publicada na Cinética, e pode parecer impressionante como inadvertidamente nossos parágrafos iniciais são parecidos. Mas não há nada de surpreendente nisso: afinal, como eu já disse, essa é a maneira mais óbvia e mais precisa de definir o filme. Apesar de eu discordar do tom elogioso da crítica, Fábio faz uma observação bastante precisa sobre um dos momentos luminosos de Elle Fanning: “a paixão que observava Scarlett Johansson de peruca rosa, encarnando Chrissie Hynde na

"Look how all the kids have grown, oh / We have changed but we're still the same"

interpretação de “Brass in Pocket”, e o amor que aflora com um número de patinação de Elle Fanning (que nos lembra o formato circular do primeiro plano e que é predominante em todo o filme, mas que aqui esbanja uma graciosidade que inexiste na dureza do Porsche)”. Momentos como esse, ao som de ‘Cool’, de Gwen Stefani, e as brincadeiras na piscina entre a garota e o pai, embalados por ‘I’ll Try Anything Once’ (versão minimalista do Strokes para a sua ‘You Only Live Once’), demonstram que Coppola seria mais talentosa como diretora de videoclipes. Ok, ok, mais uma vez, esse pode ser o ponto da coisa toda, mas não é um ponto muito interessante de se fazer.

Em Encontros e Desencontros, havia a vontade de se embutir mistério e peso na imagem, dar-lhe um relevo, infundir sentimento – algo por trás daquilo que está diante dos nossos olhos. Criava-se, então, um parêntese simples e intimista na vida monótona e melancólica daqueles personagens –  e a melancolia se fazia mais presente justamente porque o final do filme, por mais bonito que fosse, já estava descompassado com os personagens, que à força tinham que deixar aquilo para trás. Colocado nos termos desse último filme, Encontros e Desencontros se dá no espaço de tempo em que o cara sai do carro e olha em volta – vê a paisagem, respira ar puro, põe os pés no chão, sente o peso das coisas (os sentimentos bons e ruins) –; mas no fim das contas ele tem que voltar ao carro e retomar o percurso. Enquanto que Somewhere, ao contrário, o tempo todo está a subtrair esse peso, esse mistério, esse ar-puro/pé-no-chão da imagem; quer apenas o ar abafado e artificial dos interiores de hotel, a tal imagem sem mistérios. Se em Encontros e Desencontros intuíamos o artificialismo quando confrontávamos a vida tediosa dos personagens com aqueles momentos intensos que eles compartilhavam entre si, em Somewhere somos apresentados de frente a esse artificialismo para mal-e-mal intuir esse mistério e essa beleza além do quadro. No final do filme, um tanto quanto forçadamente, Stephen Dorff vai em direção a essa vida mais, sei lá, “significativa”, e nós somos deixados com o artificialismo. Não tem graça, Coppola; não quero só o videoclipe, quero os momentos reais de força e beleza. Analiticamente toda esse procedimento de deixar a beleza e a profundidade fora de quadro é até interessante, mas como filme não tem nenhuma força, desculpa. Não é exatamente que eu queira ver o que acontece quando o cara deixa o carro pra trás; não é isso. As voltas na pista podem ser uma coisa legal; mas se você vai ficar dando voltas e voltas ao redor do próprio umbigo, primeiro se certifique de que o seu umbigo é minimamente interessante. O seu já foi, Coppola, mas não me parece ser mais.

***

E o meu também não deve ser lá muito digno de nota, mas façamos mais uma tentativa. One more time, então, with feeling.

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Dia 5 (terça-feira, 29 de setembro).

E agora me torno prisioneiro do meu próprio dispositivo – dois filmes por dia, cada um deles com um comentário de cerca de seis parágrafos tentando dar conta da experiência de assistir ao filme. Sempre seguro, sempre sabendo o que dizer, sempre pronto pra definir. “Exploração dos espaços”, “cinema de corpos”, “filme de superfícies”. Análises completas e totalizantes, falando o que o filme é, o que ele quis dizer.

Tudo bem, em todos os comentários me detive mais nas sensações que os filmes me passaram do que propriamente num esmiuçamento do “significado” do filme. E tudo bem que em todos os comentários as idéias me vieram durante a redação – o próprio ato de escrever, de pensar o filme, me fez ter uma noção melhor do que eu apreendi daquilo que eu havia visto. Um processo para se chegar ao filme a posteriori – e no entanto em várias ocasiões cheguei à conclusão de que a força maior do filme estava no momento da projeção, nas sensações imediatas.

Não que os filmes se esgotem e se limitem à sua duração – mas é ali que se encontra seu ápice, e tudo o que vier depois não estará à altura daqueles momentos. O que pode acontecer é que a reflexão posterior suscite idéias novas, forje ligações a partir da visão de conjunto do filme; e é nesses momentos então que é necessária uma revisão aproveitando-se de tudo o que foi pensado. E ainda assim, nesse caso, a força maior estará nesses dois momentos – visão e revisão dos filmes – e não na ponte entre eles.

Por isso, ainda não consegui descobrir o propósito deste blog. Não é crítica propriamente o que pretendo fazer, tampouco análises – ainda que, vez por outra, meus textos possam soar dessa forma. Posso até percorrer esses caminhos, mas esse não é o foco. Comentários, impressões – raspar a superfície numa tentativa de aprofundamento. É aí, mais uma vez, que o título do blog talvez faça sentido – através do espelho, escrever sobre os filmes para melhor apreciá-los, melhor compreendê-los (se compreender estiver em questão). O que parece ficar sugerido, então, é que é necessário fazer o caminho de volta, voltar pro lado de cá. E, pra isso, os filmes precisem ser vistos de novo (o que, em termos de filmes do Festival, pode não ser possível).

É o que ocorre comigo muitas vezes: só posso dizer que realmente vi determinados filmes depois de vê-los umas segunda vez. Mas não sei o quanto isso é válido. Talvez fosse o caso de parafrasear Heráclito e dizer que nunca se pode ver o mesmo filme duas vezes. A experiência sempre será totalmente diversa em cada uma das vezes. Mas estou divagando.

O problema que eu tive com um dos filems vistos terça-feira tem a ver com uma questão da maneira de olhar, do modo de se aproveitar um filme. Porque não estou certo de que se deva tentar entendê-lo durante sua projeção, intelectualmente falando. Em algum momento do referido filme, é dito algo como “só é possível entender uma história quando ela termina”. Então eu poderia dizer que essa primeira experiência de contato com um filme é (e deve ser) puramente sensorial, ao invés de ser uma relação que passe por uma análise intelectualizante. Mas obviamente não dá pra compartimentalizar as coisas dessa maneira. No fim das contas, é uma amálgama de experiência sensória com experiência intelectual, e a relevância de cada uma delas varia de filme pra filme.

De qualquer forma, é preciso encontrar alguma maneira de acessar o filme, estabelecer alguma relação com ele que não seja a de indiferença. Há filmes que instigam uma relação de repulsa ou ódio ou coisa similar, e vou ser honesto aqui e dizer que não procuro muito assistir a filmes desse tipo. Por outro lado, há filmes que parecem demandar uma série de pré-requisitos, conhecimentos prévios pouco usuais e uma vasta experiência cinematográfica para que seja possível usufruí-los minimamente. Sim, sim: estou falando de filmes do Godard.

Elogio ao Amor, de Jean-Luc Godard. Instituto Moreira Salles, 18h. Eu simplesmente não consigo me relacionar com um filme do Godard. Não consigo acessá-lo. Não vi quase nada dele, porque nunca me senti preparado, nunca achei que tivesse conhecimento suficiente para digeri-lo. Pode ser uma coisa minha, não sei.

O primeiro filme do Godard que eu vi foi em 2007, no primeiro período do meu curso de roteiro na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Cruzando essa data com algumas referências biográficas dadas alguns posts atrás, é possível perceber que nessa época eu tava engatinhando ainda no cinema. E o professor (Ruy Gardnier, editor da Contracampo, vejam só – na época eu nem sabia da existência da Contracampo) passou Duas ou Três Coisas Que Sei Dela (filme meio obscuro do Godard, pra vocês verem como a coisa começou). Não tenho certeza se ele passou o filme inteiro; creio que tenham sido alguns trechos. Mas os pedaços que vi… obviamente, fiquei completamente perdido, me sentindo absolutamente idiota. Não entendi nada do que se passou na tela.

Em seguida, vi Acossado. Um filme dele com o qual pude me relacionar melhor; os fiapos de narrativa e de trama foram suficientes pra me levar através do filme, e tratava de questões mais acessíveis. Ainda assim, havia muitos detalhes que eu sabia que estavam ali por um motivo, mas eu simplesmente não conseguia descobrir que motivo era esse. Além disso, dava para perceber pelo estilo do filme que o cara tinha um jeito de pensar bastante singular. O fato de ser o primeiro filme de Godard me fez ficar bastante pessimista quanto ao que viria a seguir.

Vi O Desprezo e Alphaville, filmes cujos fiapos de trama e narrativa calcada minimamente nos moldes tradicionais permitiram uma relação mais próxima. Claro, ainda hoje sinto que só arranho a superfície desses filmes, mas há algo ali que compreendo, e disso eu gosto. Mas há muito que por mais que eu pense e analise não consigo compreender. Fico simplesmente perdido em boa parte dos filmes.

Pode-se dizer que “não é pra entender”, e em parte concordo que às vezes achar explicações e significados pra tudo o que aparece é altamente redutor e idiota. Mas sempre achei isso uma postura meio preguiçosa de não querer ir além; aquela coisa de que, se é pra ficar na superfície das coisas, melhor ficar mudo e não dizer nada sobre nada. Além disso, sempre ouvi esse bordão de que “não é pra entender” em relação aos filmes do Lynch. Sei que não se trata de entender strictu sensu, mas no geral identifico as questões que ele aborda em seus filmes e consigo tecer uma análise sobre isso.

Com Godard, não consigo chegar nesse ponto. A incapacidade é minha, eu sei, o problema está em quem vê e não no que é visto. Mas há um ponto nisso tudo que parece independente da minha capacidade de compreensão, e é ele que vou abordar.

Em Elogio ao Amor, consigo identificar (e até me relacionar com e me interessar por) algumas questões. Na verdade, uma questão principal e outra que é levantada en passant. Entendo como ele trabalha com questões de História e de construção da memória (já mencionei que gosto desses temas), e vejo como os procedimentos técnicos do filme apontam pra isso – presente narrativo filmado em preto-e-branco e película, passado narrativo filmado em cores e em digital. Algumas das coisas faladas durante o filme também discutem isso.

Fora esse aspecto, tem a ótima cena dos produtores americanos querendo comprar a história de um casal de idosos franceses. A neta deles intervém e solta algumas críticas interessantes aos americanos (“vocês são um povo sem nome”). Mas isso é uma questão menor no filme.

Pronto, essa é a extensão do que eu entendi (em sentido estrito e lato) do filme. Sei que há muito mais que isso, mas por algum motivo – falta de experiência, de conhecimento, de capacidade intelectual de conjugar elementos, sei lá -, não consigo ir além.

E é aí que entra meu ponto. Vejam, é claro que depois desse desabafo todo não tenho nem como tentar parecer pretensioso (afinal de contas, acabei de admitir que não entendo Godard). Mas me considero um cara razoavelmente inteligente. E me parece que o problema (se é que “problema” é a palavra adequada aqui) não pode estar inteiramente em mim.

Godard é de fato um cara meio hermético, e com filmes bastante inacessíveis. São filmes, portanto, que pedem um esmiuçamento, uma análise detalhada, que obviamente não pode ser feita nem em uma nem em duas sessões do filme. É um cara pra ser pensado, muito antes de ser visto. Ou, ainda, seguindo o raciocínio que eu tinha feito antes – ser visto, ser analisado, ser revisto. Mas, no caso de Godard, é: ser visto, ser analisado, reanalizado, esmiuçado, estudado, revisto. E esse processo tem de se repetir algumas vezes.

Óbvio – ÓBVIO – que isso não é ruim. O cara te instiga a um processo de reflexão absurdo. Uma conclusão a que se chega (e que agora parece óbvia, e é mais uma constatação que uma conclusão, se eu for parar pra pensar) é que o Godard é um cineasta que pensa o cinema fazendo cinema. Mas esse pensar vem antes do fazer, no sentido de que o mais importante é a reflexão sobre o cinema (e daí para a reflexão sobre diversos outros assuntos mais profundos) do que a partir do cinema. Assim como Deleuze pensa o cinema através da escrita, Godard pensa o cinema através do cinema. Mas é um processo muito ensimesmado, parece que começa em termina em si mesmo, e no caminho passa por alguns lugares inatingíveis.

E aí a gente pega como exemplos caras como, sei lá, Machado de Assis e James Joyce, na literatura, ou Tarantino e De Palma, no cinema – eles pensam sua arte através dela mesma, mas nesse processo eles passam por (ou melhor, se utilizam de) conceitos bem mais palpáveis e envolventes. Tudo bem que Joyce não é leitura pra qualquer um, mas Machado tem algum nível de acessibilidade – é leitura obrigatória de escola. Tarantino e De Palma sem dúvida são bastante acessíveis; não conheço ninguém que não tenha gostado e se divertido ao ver algum filme de pelo menos um deles. São obras que atuam em vários níveis, e à medida que você estuda e ganha experiência de mundo, é possível atingir níveis mais profundos de entendimento. Mas partem de um primeiro nível bastante acessível.

Acessível pra quem?, é a pergunta. Pra mim, óbvio. Com certeza deve ter quem reclame que Tarantino e De Palma são muito estilizados e repelem qualquer envolvimento com a obra, que experimentam demais e tornam seus filmes inacessíveis. E, aí, é basicamente a mesma coisa que tou falando do Godard.

Essa questão também pode enveredar por outro lado: e quem disse que essas obras têm de ser acessíveis, quem disse que é preciso “rebaixá-las” para que pessoas com menos “bagagem cultural” possam se relacionar com elas?

Não digo que elas devam ser simplificadas e tenham seu conteúdo diluído para que mais pessoas possam – ham-ham – “entendê-las”. Não é obrigação de nenhum artista fazer com que suas obras sejam compreensíveis, ou que as pessoas possam se relacionar com elas. Apenas prefiro – e acho mais justos – aqueles que o fazem. Principalmente porque me parece um desafio maior, e prova de maior talento, quando alguém consegue fazer conceitos complexos serem apreendidos por qualquer um.

Vejo muitos acadêmicos e teóricos analisando profundamente as obras do Tarantino e do De Palma, e eu gosto dos filmes deles desde que eu tinha 14 anos. Da mesma forma, vejo os mesmo acadêmicos e teóricos fazendo análises igualmente profundas das obras de Godard – mas não conheço nenhum garoto de 14 anos que tenha conseguido se apaixonar por elas.

Mas eu só tenho vinte. Talvez – apenas talvez – ainda haja tempo.

Como Desenhar um Círculo Perfeito, de Marco Martins. Estação Vivo Gávea, 20h10. Pavoroso. Excessivamente melodramático, de mal gosto, dramaturgia porcamente trabalhada (ainda que o filme pareça confiar em sua narrativa “elíptica”, que amontoa um punhado de situações clichês para que seu protagonista totalmente imbecil entre em colapso), tentativas óbvias ou incompreensíveis pra metaforizar tudo que é mostrado no filme, e com uma pedância insuportável. É preciso se segurar pra não fazer trocadilhos infames com o título do filme e falar pro cara aprender como fazer um filme direito.

A quarta-feira de Manoel de Oliveira e Herzog foi um remédio muito bem-vindo.

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Dia 4 (segunda-feira, 28 de setembro).

– 24 City, de Jia Zhang-ke. Estação Vivo Gávea, 15h10. Eu já tinha perdido a oportunidade de ver esse filme no Festival do ano passado (porque ou eu tô maluco ou esse filme constava na programação de 2008). E, como não dá muita pinta de que vá entrar em cartaz, preferi esse a Brilho de uma Paixão, de Jane Campion, que de qualquer forma estréia em circuito comercial daqui a pouco.

Pra quem tinha como única referência do cineasta a obra-prima Still Life, um dos melhores filmes de 2007, esse 24 City foi um tanto quanto decepcionante. Novamente – eu não estou delirando nem forçando a barra, essa parece ser a tônica de muitos filmes desse Festival -, o que está em questão aqui é a exploração e a intervenção no espaço; a maneira como ele se modifica e como as pessoas se relacionam com essa metamorfose. Questão que também era central em Still Life. Mas enquanto lá a construção era feita a partir do espaço, numa intervenção quase onírica que atingiu seu ápice no prédio lançado como foguete, aqui o filme se constrói para o espaço, num método de contemplação de como os corpos humanos contrastam com os maquinários gigantescos.

Outra diferença fundamental é que Still Life era uma ficção elaborada a partir de espaços “reais”, por assim dizer; tomava-se a cidade como ponto de partida para fabulações que diziam muito sobre a China. 24 City, por outro lado, é um documentário que limita-se a registrar (de maneira bela e eficaz, diga-se de passagem) determinado espaço – no caso, uma fábrica que vai virar um complexo residencial -, e povoá-lo com as histórias dos ex-funcionários que compõem um imaginário acerca do modo de vida do trabalhador chinês.

Esse projeto um tanto quanto convencional e já exaurido dá a impressão de ser um passo atrás na trajetória de Jia Zhang-ke, que havia feito, com tema similar, um filme bem mais forte em termos estéticos e até humanos. Ainda que o talento do diretor consiga tirar momentos inspirados dessa fórmula batida – como a inserção de telas pretas com frases e poemas famosos, além de diversas músicas populares chinesas -, o filme fica lento e repetitivo em muitos momentos. Jia não tem a habilidade em entrevistas de um Coutinho, e os depoimentos são bastante simples e desprovidos de maior interesse em si. Isso até serve bem, de certa maneira, à construção do tal imaginário, mas não é porque os depoimentos são mais importantes como dispositivo que como histórias a serem contadas que eles devem ser desprovidos de interesse próprio (vide o próprio Coutinho, que num filme de puro dispositivo como Jogo de Cena seleciona depoimentos que são absolutamente fascinantes em si mesmos).

O momento mais forte de 24 City é também um dos mais deslocados, e não consigo ver como ele se encaixa no resto do filme. Uma mulher por volta dos seus 40 anos diz que, no tempo em que trabalhava na fábrica, era chamada de “Pequena Flor” por seus colegas, devido à sua semelhança com a atriz principal do filme de mesmo nome. As variações em torno dessa história são interessantes; e foi apenas ao final, quando mostrada uma cena do filme Pequena Flor, que me dei conta de que a mulher era de fato a tal atriz, e que ela estava apenas interpretando o papel de uma funcionária.

Tudo bem, esse tipo de jogo perde muito da força pra quem está acostumado aos recentes documentários brasileiros, principalmente pra quem já viu Jogo de Cena umas sete vezes. Mesmo assim, não deixou de ser um momento de maior inspiração (em termos de técnica de documentário) que o resto do filme. Se é possível inferir que a inserção do depoimento dessa atriz contribui para a construção de um imaginário de época, ainda assim colocar em questão a ficcionalização da história da China parece fora de contexto, se pensarmos que isso não parecia interessar em Still Life e certamente é uma questão menor em 24 City – afinal, o que parecia importante eram as histórias que surgiam em meio ao modo de vida repetitivo da classe trabalhadora chinesa, e a maneira como as pessoas estão lidando com essas histórias agora que o espaço em que elas ocorreram está sendo modificado tão profundamente.

– 35 Doses de Rum, de Claire Denis. Estação Botafogo, 22h. Sou relativamente novo no cinema de Claire Denis, tendo assistido a apenas dois de seus filmes, ambos recentemente. O primeiro deles – talvez não a melhor introdução no estilo da cineasta – foi Trouble Every Day. Belo e absolutamente nojento e incômodo, esse filme me chocou de maneira quase repulsiva, pois cheguei a ele sem muitas informações prévias, apenas com uma leve intuição de qual seria o estilo de Denis.

Intuição que se mostrou correta quando assisti ao filme de estréia da diretora, Chocolat. Apesar de todo o estilo visual de Claire Denis ser facilmente perceptível em Trouble Every Day – que até potencializa de maneira bastante radical uma das principais características da cineasta, que é a de fazer um cinema da materialidade do corpo humano -, Chocolat sintetiza de maneira bem mais clara certos detalhes que eu esperava encontrar nos filmes de Denis: narrativa elíptica, dramaturgia bastante pontual e bem mais intuída do que efetivamente mostrada, captação de pequenos gestos e detalhes quase imperceptíveis, etc.

Cinema de pequenos gestos,...

Cinema dos pequenos gestos,...

Finalmente, em 35 Doses de Rum, vejo a melhor síntese desses elementos, em um filme simples que no entanto tem momentos de grande força. Em Chocolat, as características-chave do cinema de Denis, ainda que se fizessem presentes, encontravam-se diluídas entre outras preocupações, como o tom político evidente e bem mais direto, além de um flerte com questões de multiplicidade de pontos de vista e a mecânica da memória.

... superfície dos corpos,...

... da superfície dos corpos,...

O fiapo de narrativa de que parte 35 Doses de Rum (inspirado num filme de Ozu, Pais e Filhos) acaba funcionando melhor dentro da proposta de um filme de contemplação, da captura de gestos e da sensualidade dos corpos. A trama, ainda que não seja de todo desimportante, é bastante lacunar, e se desenvolve não por acontecimentos ou situações, mas por pequenos momentos que ilustram, e vez por outra significam ou alteram, as relações entre os personagens. Relações bastante difusas e pouco definidas, com exceção do grande afeto existente entre pai e filha.

O filme acompanha as trajetórias individuais desses personagens, se detendo

... de troca de olhares:...

... da troca de olhares:...

nos momentos em que essas trajetórias se encontram (mas não se limitando a eles). Não à toa, a melhor seqüência do filme é aquela que encapsula as tensões dramáticas (se é que podemos chamar assim) dos quatro personagens principais: o pai, a vizinha que parece ter atração por ele, a filha e o vizinho de cima que tem uma relação indefinida com ela. Todos eles vão juntos para um show; mas o carro enguiça no meio da rua e, em meio à chuva, eles resolvem se abrigar em um bar. Aqui há uma incrível cena de dança, em que o bailar dos corpos, as trocas de olhares, os pequenos toques, tudo é orquestrado de maneira precisa e sensível por Denis, numa seqüência que parece sintetizar o principal do seu cinema.

Se o filme tem falhas (uma certa barriga na viagem do pai e da filha à Alemanha; uma tentativa desnecessária de incluir tintas políticas através das discussões na faculdade da filha), elas se tornam mínimas diante de momentos de tanta potência visual, principalmente diante da perfeita captura dos corpos na mencionada cena da dança, em que fica evidente todo o prazer que pode proporcionar o cinema de Claire Denis.

 

os grandes prazeres do cinema de Claire Denis.

... os grandes prazeres dos filmes de Claire Denis.

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Dia 3 (domingo, 27 de setembro).

Tokyo!, de Michel Gondry, Leos Carax e Bong Joon-ho. Leblon 1, 16h30. Tokyo! é mais um daqueles filmes em que juntam alguns diretores famosos para criarem variações sobre um mesmo tema. Como já constatou inúmeras vezes, os resultados dessas tentativas são mais negativos que positivos. Apesar de ser interessante na teoria, raramente essas compilações funcionam bem na prática.

Apenas alguns dos curtas se destacam, e esses pontos altos nunca são suficientes para salvar o restante do filme, que em geral carece de maior unidade. Ainda que o painel multifacetado seja um dos interesses primordiais desse tipo de projeto, creio que talvez fosse interessante se houvesse um diálogo maior entre as partes, uma dialética que criasse tensões entre os curtas, ou que os tornasse complementares, ou que ao menos lhes desse um significado de conjunto maior que o significado individual.

Tokyo!, apesar de apresentar muitas dessas falhas, é mais bem-sucedido que seus companheiros. Talvez um dos principais fatores que contribua para isso seja o fato de o filme ser composto por apenas três curtas, que na realidade são médias, pois todos têm pouco mais de meia hora. O filme fica menos esquizofrênico e dá mais tempo aos diretores para desenvolverem suas visões. Também seria uma boa oportunidade para criar um diálogo mais forte e significativo entre os filmes, o que não me parece ter ocorrido aqui. Ainda que se possa inferir ligações temáticas entre os segmentos para além do fato de todas se passarem em Tokyo, todas elas me parecem genéricas demais para que os filmes possam extrair força do conjunto. Ou seja: os filmes não funcionam melhor juntos do que separados. Mas, em si, todos têm lá seu interesse (que, pra mim, foi aumentando gradativamente a cada segmento).

Gondry tem seus momentos no segmento “Interior Design”, trabalhando de maneira interessante num registro óbvio. O plano geral de milhares de carros estacionados, a seqüência de apartamentos em péssimas condições, as dificuldades da garota em arranjar trabalho – todas as situações trabalham com um humor pouco original, principalmente em se tratando de Japão. Entretanto, a melancolia da protagonista é bem trabalhada, a ocupação do pequeno apartamento por aqueles personagens é bem explorada, e as trucagens extra-diegéticas, por assim dizer, do filme-dentro-do-filme são uma discussão interessante do próprio tipo de cinema que Gondry faz. Estilo que Gondry abraça abertamente no final de tons fantásticos, apelando para uma metáfora um tanto quanto óbvia, mas que funciona visualmente, como boa parte dessas trucagens gondryanas.

Leos Carax, cineasta que eu não conhecia, fez um objeto estranho, que incomoda, e arranca um riso meio nervoso com um humor apelativo, mas francamente hilariante. “Merde” traz um protagonista estranhíssimo, apresentado de maneira genial no longo plano-seqüência de abertura. Novamente, as alegorias aqui não são originais, mas Carax sabe utilizá-las melhor do que Gondry ao explorá-las até o paroxismo, elevando a níveis absurdos as críticas à xenofobia e ao conservadorismo japoneses. É frontal na crítica ao modo de vida japonês mas é frontal também na troça a essas análises fáceis e redutoras baseadas em metáforas quase maniqueístas.

Bong Joon-ho faz o segmento mais sutil e o que menos apela para o humor fácil – e, por isso mesmo, o melhor dos três. Minhas análises dos filmes do Festival têm se voltado obsessivamente pra questão da exploração dos espaços, mas aqui não dá pra escapar disso: a composição do apartamento do protagonista é nada menos que genial, e só esse dado já faria com que “Shaking Tokyo” estivesse acima de seus companheiros. Mas o filme vai além: os terremotos, a entregadora de pizza e suas tatuagens representado botões de computador, a jornada do protagonista quando sai de casa, as ruas desertas, o final – todos são elementos criados e realizados lindamente por Bong Joon-ho, seja no ritmo, seja na fotografia, seja no tratamento do som, seja na sutileza da dramaturgia.

Justamente por esse crescimento gradativo de qualidade que Tokyo!, no final das contas, é razoavelmente bem-sucedido em seu intento. Se não há senso de unidade ou de diálogo entre as partes, ao menos elas são, em si mesmas, obras de qualidade.

Matadores de Vampiras Lésbicas, de Phil Claydon. Leblon 1, 19h. Aqui está um caso interessantíssimo, menos por ser um filme realmente bom do que pelo tipo de relação que ele propõe com o público. Ele era, claro, uma das minhas prioridades no Festival, e é bem o tipo de filme pra ser visto com amigos. Nunca vi um filme que tivesse como força motriz única e exclusiva uma parte tão pequena de seu todo: Matadores de Vampiras Lésbicas é um filme que termina no seu título.

Ele opera a partir do sensacionalismo rasgado e declarado que traz em seu nome, e disso não passa. Aliás, nem pensa em ir além disso, em nenhum momento ele tenta ser mais do que é. O que primeiro te vier à cabeça quando você vir o nome “Matadores de Vampiras Lésbicas” não será muito diferente do que é o filme. As piadas são óbvias, o filme tem uma estrutura altamente previsível, e talvez até explore a violência e o sexo menos do que se esperaria. Em nenhum momento ele irá além da paródia. Mas não é uma paródia do tipo Todo Mundo Em Pânico, que se põe acima do objeto parodiado e dele faz pouco. O filme abraça seu cerne trash e joga de acordo com todas as regras, extraindo humor da bizarrice das situações e das convenções de gênero. O roteiro assumidamente tem buracos e ninguém liga, os personagens conhecem as regras dos filmes de terror e jogam a partir delas.

Talvez a impressão de que o filme é menos engraçado do que poderia ser advenha do fato de que ele não é tão consciente de si mesmo, no sentido de que faz menos piadas metalingüísticas do que estamos acostumados nesse tipo de filme. Entretanto, isso acaba sendo um ponto positivo, porque o filme não se torna irônico demais, o que fatalmente originaria piadas “espertas” e daria a Matadores de Vampiras Lésbicas o tom superior meio babaca de filmes como Todo Mundo em Pânico.

Claro que Matadores… não tem o brilhantismo ou o domínio de aparatos de um Arraste-me para o Inferno, mas sabe jogar com a única ferramenta que tem à disposição, e me parece um bom exemplo de saber como fazer uma grande premissa se bastar por si mesma.

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Dia 2 (sábado, 26 de setembro).

Abraços Partidos, de Pedro Almodóvar. Leblon 1, 16h30. Devo dizer de saída: do Almodóvar, só vi Fale com Ela (quando eu tinha uns treze anos) e Volver. Lembro de ter gostado de Fale com Ela, ainda que eu não ache que minha opinião fosse das mais confiáveis à época. Volver também me cativou bastante. Apesar disso, por algum motivo, assistir ao restante da filmografia do diretor espanhol nunca esteve no topo de minhas prioridades. Mas eis que surge esse Abraços Partidos, que de certa forma me dá nova chance de me empolgar com o Almodóvar. De início, devo dizer que minha reação foi similar à que tive quando vi Volver: gostei do filme, mas não a ponto de me empolgar com o diretor. Inclusive, inicialmente achei Abraços Partidos mais fraco que o filme de 2006.

Agora, depois de ler coisas sobre o filme (muitas delas razoavelmente negativas, inclusive) e de tê-lo digerido um pouco melhor, Abraços Partidos subiu em minha estima – apesar de minha preferência ainda se inclinar ligeiramente para Volver. É um filme que aparentemente só crescerá com o tempo, principalmente à medida em que eu for assistindo a mais coisas da filmografia do Almodóvar (e a mais coisas importantes do cinema em geral), porque é óbvio que, como o Tarantino, o cara trabalha segundo uma lógica interna e um estilo próprio, ao mesmo tempo que conjuga um punhado de referências de maneira absolutamente orgânica (e o fato de uma das mais óbvias dessas referências em Abraços Partidos ser Hitchcock só aumenta minha empolgação).

Mesmo depois de Volver, um filme que trabalha num registro um tom abaixo, não me incomodam (nem me são inesperadas) a estilização excessiva e a profusão de metalinguagem. Telas e superfícies, o título e os outros posts desse blog já denunciaram, são temas que muito me fascinam; portanto, as fotos, espelhos, telas de TV, lentes de câmera, filmes-dentro-do-filme e um cara cego são elementos que certamente me atraem. E, claro, a presença deslumbrante de Penelope Cruz em diversas facetas é um bônus importantíssimo.

O filme me cativou de diversas maneiras, e o fato de serem tão díspares mostram o amplo domínio de Almodóvar no seu ofício: se o plot de vampiros em bancos de sangue imaginado pelo assistente do protagonista mostra a habilidade do cineasta espanhol com os diálogos cômicos, as duas versões da mesma cena do filme-dentro-do-filme “Garotas e Malas” mostram seu timing preciso de humor. Se Almodóvar atinge extremos no histrionismo do filho homossexual do produtor e na estoicidade absurda do roteirista cego, ele prima pela sutileza em planos como aquele em que Mateo Blanco/Harry Caine tira uma foto dele e de Lena (Penelope Cruz) vendo um filme (Lena chora), ou quando Caine passa as maõs por sobre a tela em que é reproduzido seu último beijo com a atriz.

O filme talvez exija uma revisão (e mais espaço) pra uma reflexão mais aprofundada; mas, no momento, tal elaboração não me parece necessária. Soa altamente tosco e clichê dizer que se trata de um filme de amor ao cinema; e, também por isso, essa é uma das poucas vezes em que eu, do lado de cá do vidro, vou me abster de tecer comentários mais profundos acerca do que tá do lado de lá. Afinal de contas, certas vezes vale a pena se manter na superfície.

[Mas é irônico que a reflexão sobre o filme tenha me levado a concluir que ele vale muito mais a pena num nível sensório imediato que num nível analítico posterior – o que leva à necessidade de revisão do filme e à conclusão de que 90% das linhas escritas até aqui foram virtualmente inúteis.

E – numa ironia semântica meio tosca – esse filme de superfícies é o que finalmente vai fazer com que eu me aprofunde na obra do Almodóvar].

Distante Nós Vamos, de Sam Mendes. Leblon 1, 19h. Novamente, a preguiça e a mão-de-vaquice me fizeram optar pelo caminho de menor resistência. Ficar no Leblon e ver esse filme parecia mais acertado. E não me arrependo, não.

Sam Mendes é um diretor absolutamente superestimado, mas isso não quer dizer que eu o ache detestável. Beleza Americana pode ser altamente pretensioso e proporcionalmente raso, mas há momentos visualmente interessantes (mas não, eu NÃO tô falando do plano da sacola voando). Soldado Anônimo é um filme que merecia maior atenção; tá certo que sou fácil de agradar e impressionar e basicamente gosto de qualquer coisa fotografada pelo Roger Deakins, mas o cavalo coberto de petróleo não me parece um preciosismo visual qualquer. All in all, nunca foi um cineasta pra ser acompanhado de perto, mas me entreteve o suficiente pra eu lhe dar mais chances.

Não tinha expectativas muito definidas pra esse Distante Nós Vamos, mas havia um certo estilo que eu esperava que ele seguisse. E ele não segue. Ao contrário, escolhe seguir por outro caminho largamente trilhado: os já tradicionais filmes indie, com trilhas sonoras que oscilam entre rock clássico e baladas acústicas no estilo Elliott Smith ou Nick Drake, com personagens desfuncionais e humor caricato, geralmente emulando Wes Anderson. Os exemplos mais evidentes dessa safra são Pequena Miss Sunshine e Juno. Devo dizer que, apesar da óbvia inferioridade em relação à fonte, gosto muito de todos eles (assim como nunca tive problemas com pastiches de Tarantino, tipo Guy Ritchie). Não à toa, um dos filmes que mais quero ver nesse festival é (500) Dias com Ela.

Distante Nós Vamos está longe de ser um representante significativo dessa linhagem indie; mas tem seu valor. A dupla de atores protagonistas é carismática; o cara do The Office fazendo um personagem engraçado com cenas hilárias, e a Maya Randolph trazendo um tom melancólico e introspectivo. E eles são mesmo o melhor do filme; os coadjuvantes, ainda que se entenda que são caricaturas exageradas e intencionais, não funcionam (mesmo nas mãos de atrizes talentosas como Allison Janney e Maggie Gyllenhaal).

Ainda que o filme tenha um tom auto-indulgente de “crítica à sociedade americana” (que sempre incomodou nos trabalhos anteriores de Mendes), o final me parece um tanto quanto honesto nesse sentido, como se o casal dissesse “ah, bem, somos descolados e tudo o mais, mas no fim das contas vamos formar uma família mais ou menos como todo mundo, e estamos ok com isso”. Ao contrário do que uma leitura rápida poderia dar a entender, parece-me que o filme está menos preocupado em congratular arranjos alternativos de família ou em diagnosticar as mazelas de um sistema tradicional do que em tentar encontrar um caminho mais ou menos próximo do convencional, o melhor que dê pra fazer em dadas circunstâncias.

Sob essa perspectiva, o filme no fim das contas é um “torna-te quem tu és” meio torto, aquela coisa de no final da viagem descobrir que você estava mais ou menos certo desde o início. E, assim, o filme já escapa do que se convencionou como a principal (e mais preguiçosa) crítica a ser feita a esses filmes indie: a de que eles pregam um alternativismo cool quando na verdade são tudo farinha do mesmo saco. E o que me parece latente neles é justamente o contrário: no fim das contas desnudam essa “atitude descolada”, esse desespero por atenção através de frases espertas e roupas diferentes, como mera tentativa de encontrar um lugarzinho confortável num mundo torto. E eu não consigo evitar de me identificar e me simpatizar profundamente com isso.

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Ainda sou novato na coisa, mal aprendi a andar e falar: é apenas meu terceiro ano de Festival.

Lembro-me claramente da manhã de uma segunda-feira, em setembro de 2007, quando vi o suplemento d’O Globo sobre o Festival.

Foi só no final do colégio que comecei a perceber que meu interesse pelo cinema ia além do “pô, a gente podia ver um filme na sexta, hein…”. O Ensino Médio foi um gradual e (muito) lento processo de descoberta do cinema. Alguns filmes vistos a esmo me marcaram por diversos motivos nesse período (me vêm à mente alguns nomes óbvios, como Pulp Fiction, Annie Hall e The Godfather; e outros talvez um pouco – só um pouco – menos convencionais, como Era Uma Vez na América, A Vila (!), O Iluminado, Os Excêntricos Tenenbaums e Antes do Amanhecer/Antes do Pôr-do-Sol. Qualquer dia elaboro mais sobre cada um deles).

Por ora, isso serve apenas para ilustrar o motivo do meu deslumbramento e espanto com a notícia de que iriam passar tantos filmes novos na cidade. Desde aquele primeiro dia, eu já elaborava minhas detalhadas e prolixas listas de horários.

Minha melhor lembrança do Festival ainda é a do meu primeiro dia: sem ter almoçado, havia visto dois filmes (O Sol, do Sukurov e Sonhando Acordado, do Gondry); eu estava morrendo de dor de cabeça, de fome e de sono, mal me agüentando em pé, quando entrei na sessão de À Prova de Morte, do Tarantino. [Vale ressaltar também que era meu primeiro Tarantino no cinema: mesmo se eu já gostasse do cara em 2004, quando Kill Bill – Vol. 1 foi lançado nos cinemas brasileiros (eu só veria Pulp Fiction e Cães de Aluguel em 2005), eu não tinha idade suficiente para entrar na sala[1]]. Depois de alguns minutos de projeção, eu já esquecera a dor de cabeça, a fome e o sono. Foi provavelmente a melhor e mais eufórica sessão de cinema a que já fui: a platéia vibrava com os diálogos geniais e com as empolgantes cenas de ação; na sensacional perseguição final, o público veio abaixo, e ao surgimento do The End na tela seguiu-se uma das mais longas e calorosas salva de palmas que eu já presenciei em um cinema.

Ainda assim, sou bem menos obcecado do que minhas listas cheias de asteriscos, cores e observações poderiam sugerir. Não me preocupo de só ver filmes que com certeza não vão estrear em circuito (e essa atitude me rendeu bons frutos – vide o À Prova de Morte, filme que eu tinha certeza que passaria no cinema poucos meses depois do Festival e que até hoje tem seu lançamento adiado), e em cada um dos meus dois anos de Festival vi menos de vinte filmes. Não creio que esse ano vá ser muito diferente, ainda que minha lista inicial incluísse mais de trinta títulos.

Não que isso me incomode. De fato, acho cansativo e de certa forma contra-producente ver um número tão grande de filmes. No geral, se vejo mais de três no mesmo dia – ou até mais de dois, dependendo do ritmo dos dias anteriores – eu já fico com dor de cabeça. Resta pouco tempo pra digerir os filmes e deixar que eles façam efeito sobre mim. E invariavelmente acabo assistindo a algumas bombas, que me fazem desejar ter ido pra casa descansar; ou mesmo ver novamente um filme que tenha me impressionado muito.

Hoje, na saída de Abraços Partidos, do Almodóvar, conversei brevemente com uma mulher que reclamava que o Festival ficou “organizado demais”. Ela dizia que o clima de ficar horas e horas na fila pra comprar ingresso era incomparável, e que parte dessa magia estava sumindo. Concordo, em parte.

No meu primeiro Festival, senti que havia algo de extraordinário naquele amontoado de pessoas no saguão do Espaço Unibanco; comentando empolgadas sobre os filmes que iriam ver, agarrando-se ao caderno de horários d’O Globo como se fosse uma bíblia, inclinadas sobre pedaços de papel para anotar os ingressos que iriam comprar, num frenesi absurdo para ver o novo Tarantino ou o novo Lynch. Lembro-me bem da sensação engraçada que foi me sentar timidamente num dos bancos pra organizar minhas anotações. Eu, marinheiro de primeira viagem, mochila nas costas e ingenuamente acreditando que chegaria a tempo pra aula da faculdade dali a meia hora, sem saber que seria uma longa tarde com aquele papelzinho de senha na mão, fazendo cálculos mirabolantes pra conciliar horários de filmes no Odeon e em Ipanema, enquanto esperava a minha vez de ser atendido.

E, nas duas semanas que se seguiram, as inúmeras aulas matadas em favor de um bem maior, os vai-e-vens constantes pela Zona Sul carioca, os inúmeros atrasos que me fizeram perder filmes, a choppada da faculdade que me fez não ir ver Jogo de Cena no dia seguinte, sendo que o ingresso já estava comprado; os muitos encontros com amigos em diversos cinemas, os horários que coincidiam e as opiniões depois de cada sessão (a concordância em dizer que A Maldição da Flor Dourada e Velha Juventude foram experiência traumáticas, e as discussões sobre qual filme do Grindhouse era melhor – “óbvio que o Death Proof é muito mais filme que Planeta Terror”).

Algo de tradição já se estabeleceu nesses dois anos; e não me parece que ela tenha se esvaído totalmente agora. Claro que minhas anotações em folhas de caderno (apesar de ainda existirem) convivem agora com complexas tabelas no computador; e não há mais (tão) longas filas de espera no saguão do Espaço Unibanco, que agora se chama Espaço de Cinema; não tenho a ilusão de que as aulas da faculdade sairão incólumes e esse ano o caderno d’O Globo saiu bem mais tarde que o normal.

Mas o todo o resto ainda permanece; e, de alguma forma, acho que a ausência daquele fanatismo extremado que eu tive nos dois primeiros anos é de certa forma uma evolução. É que eu fico achando que esse pular de filme em filme, numa correria obsessiva para atender a uma lista gigantesca de possibilidades, acaba se tornando mais importante que os filmes em si. Tira o foco do que é mais importante na coisa, que é o cinema. Certamente não quero que uma maratona de quatro filmes por dia me deixe tão cansado a ponto de eu não conseguir aproveitar a contento a exibição de um I’m Not There, por exemplo (dormi durante uns vinte minutos numa sessão de segunda-feira à noite no Festival de 2007).

Esse ano, portanto, vou tentar encontrar esse equilíbrio entre quantidade e qualidade. Ver um número razoável de filmes sem que isso me deixe completamente acabado; selecionar minha lista com algum critério sem, no entanto, deixar que isso elimine a magia da euforia conjunta pelo amor ao cinema.

Dia 1 (sexta-feira, 25 de setembro).

Chuva, de Paula Hernández. Estação Vivo Gávea, 13h40. Minha amiga chegou muito atrasada no filme, perdendo a grande seqüência inicial que mostrava aquilo que eu acreditava que se estenderia por todo o filme: a entrada de um estranho no carro de uma mulher durante um engarrafamento chuvoso em Buenos Aires. Li na Cinética que essa idéia é meio chupada de um filme da Claire Denis. Não sei dizer; o que eu sei é que o desenrolar dessa situação inicial, a parte do filme que minha amiga não assistiu, me lembrou bastante Encontros e Desencontros, guardadas as devidas proporções. Ainda que a relação dos dois soe bastante calculada, com evolução bem cronometrada, passando pela estranheza inicial, a aproximação, a briga, a reconciliação que leva ao sexo e a despedida, a expressividade dos atores compensa bastante esse esquematismo (mas, novamente, não há aqui um Bill Murray que possa fazer a relação soerguer-se acima desse cálculo).

A narrativa é razoavelmente lacunar, e ainda assim essas elipses são previsíveis o suficiente para que estruturalmente o filme já não funcionasse, mesmo antes do desnecessário flashback explicativo e preenchedor (ainda que essa cena em si tivesse lá sua força) – ao ponto de a minha amiga, que chegou quase meia hora atrasada no filme, não ter sentido falta de nada. E me parece algo redutor pra um filme que a falta de sua meia hora inicial não seja sentida.

Ainda assim, o filme me ganhou por construir bem seus espaços – o carro da protagonista é muito bem explorado, assim como toda a dinâmica de veículos enfileirados no engarrafamento chuvoso. E também pela dupla de protagonistas, que conseguem compor seus personagens bem o suficiente para que eles não sejam (muito) prejudicados por uma narrativa excessivamente esquemática.

As Praias de Agnès, de Agnès Varda. Espaço de Cinema, 19h. Decisão muito acertada feita na última hora, no meio do caos que era o saguão do cinema quando se formava a longuíssima fila pra sessão anterior, primeira exibição aberta ao público de Aconteceu em Woodstock. Esse filme não estava na minha programação inicial, tampouco constava da minha lista de prioridades; entretanto, a preguiça e pão-durice pra não gastar dinheiro de passagem prevaleceram – como eu e minha namorada já estávamos no Espaço comprando ingressos para os outros dias, decidimos ficar por ali mesmo e ver o filme da Agnès. Escolha felicíssima.

A presença de Varda na sessão me parece algo de impressionante (e também é digno de nota que o Festival tenha a ocorrência de dois filmes internacionais sendo apresentados por seus cineastas, no caso dois nomes tão importantes e aparentemente díspares quanto Varda e Tarantino). Com seus oitenta anos e seus cabelos meio brancos, meio roxos, o discurso de Agnès Varda antes da projeção mesclou uma sabedoria de alguém com muitos anos de carreira e a empolgação de um cineasta que apresenta seu primeiro filme – além, é claro, de uma irresistível doçura.

Through the looking glass.

Through the looking glass.

O filme em si, um documentário em que Varda reflete sobre sua vida através de um painel de lembranças, fotos e fragmentos de filmes, é de uma pungência espantosa. Em geral, eu já me simpatizo de cara com projetos de documentário que desde o início se proponham a desconstruir sua “veracidade” (mesmo que isso caia na batida discussão de ficção X realidade), e que apresentem a memória, a biografia, como um painel fragmentado. Agnès mesmo diz, em determinado momento do filme, algo como: “as lembranças são como um quebra-cabeças incompleto; podemos tentar construí-lo, mas sempre restam espaços vazios”.

O filme alia procedimentos visuais simples, mas profundamente efetivos (como a seqüência inicial, em que Varda dispõe diversos espelhos em uma praia, criando imagens belíssimas), com efeitos mais rebuscados – fusões, sobreposições, mudanças no tamanho da janela de exibição, tela dividida entre fotos e imagens em movimento, etc.

Através do espelho, equipe se apresenta para a câmera.

Através do espelho, equipe se apresenta para a câmera.

Gostei especialmente da maneira como a equipe que ajudou Agnès na montagem do cenário na praia foi apresentada: todos falavam seus nomes para a câmera através dos espelhos, sublinhando o aspecto principal do filme, que é a reconstrução da vida de Varda a partir da maneira como ela organiza o que os outros têm a dizer sobre ela. Apesar de os diversos recursos visuais acima mencionados também serem efetivos para criar esse painel, há alguns momentos em que eles se tornam cansativos. Nada que prejudique o filme; apenas uma confirmação de que, pelo menos pra mim, a cineasta tenha mais força lidando com a mise-en-scène propriamente dita que com os maneirismos visuais. Dois dos meus momentos favoritos do filme são filmados com uma economia incrível, e têm muita força apenas pela maneira como a cineasta organiza a exposição. Refiro-me ao momento em que Varda mostra sua pequena casa feita com rolos de película e à cena final do filme (a “seqüência-supresa-pós-créditos”), em que várias pessoas lhe dão vassouras de presente, para representar a expressão francesa que indica os oitenta anos de Varda, que também pode significar “oitenta vassouras”.

Um grande filme sobre a memória (pessoal e cinematográfica), e o fato de eu ter gostado tanto dele apenas sublinha o quão absurdo é eu ainda não ter visto Santiago, além de explicar porque esse post começou do jeito que começou. Desde já, um dos favoritos do Festival.

Agnès Varda


[1] Ainda que eu pudesse mandar o velho macete do Cinemark, de comprar ingresso pra um filme e ver outro, como fiz tantas vezes.

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