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Posts Tagged ‘cinema de corpos’

Dia 4 (segunda-feira, 28 de setembro).

– 24 City, de Jia Zhang-ke. Estação Vivo Gávea, 15h10. Eu já tinha perdido a oportunidade de ver esse filme no Festival do ano passado (porque ou eu tô maluco ou esse filme constava na programação de 2008). E, como não dá muita pinta de que vá entrar em cartaz, preferi esse a Brilho de uma Paixão, de Jane Campion, que de qualquer forma estréia em circuito comercial daqui a pouco.

Pra quem tinha como única referência do cineasta a obra-prima Still Life, um dos melhores filmes de 2007, esse 24 City foi um tanto quanto decepcionante. Novamente – eu não estou delirando nem forçando a barra, essa parece ser a tônica de muitos filmes desse Festival -, o que está em questão aqui é a exploração e a intervenção no espaço; a maneira como ele se modifica e como as pessoas se relacionam com essa metamorfose. Questão que também era central em Still Life. Mas enquanto lá a construção era feita a partir do espaço, numa intervenção quase onírica que atingiu seu ápice no prédio lançado como foguete, aqui o filme se constrói para o espaço, num método de contemplação de como os corpos humanos contrastam com os maquinários gigantescos.

Outra diferença fundamental é que Still Life era uma ficção elaborada a partir de espaços “reais”, por assim dizer; tomava-se a cidade como ponto de partida para fabulações que diziam muito sobre a China. 24 City, por outro lado, é um documentário que limita-se a registrar (de maneira bela e eficaz, diga-se de passagem) determinado espaço – no caso, uma fábrica que vai virar um complexo residencial -, e povoá-lo com as histórias dos ex-funcionários que compõem um imaginário acerca do modo de vida do trabalhador chinês.

Esse projeto um tanto quanto convencional e já exaurido dá a impressão de ser um passo atrás na trajetória de Jia Zhang-ke, que havia feito, com tema similar, um filme bem mais forte em termos estéticos e até humanos. Ainda que o talento do diretor consiga tirar momentos inspirados dessa fórmula batida – como a inserção de telas pretas com frases e poemas famosos, além de diversas músicas populares chinesas -, o filme fica lento e repetitivo em muitos momentos. Jia não tem a habilidade em entrevistas de um Coutinho, e os depoimentos são bastante simples e desprovidos de maior interesse em si. Isso até serve bem, de certa maneira, à construção do tal imaginário, mas não é porque os depoimentos são mais importantes como dispositivo que como histórias a serem contadas que eles devem ser desprovidos de interesse próprio (vide o próprio Coutinho, que num filme de puro dispositivo como Jogo de Cena seleciona depoimentos que são absolutamente fascinantes em si mesmos).

O momento mais forte de 24 City é também um dos mais deslocados, e não consigo ver como ele se encaixa no resto do filme. Uma mulher por volta dos seus 40 anos diz que, no tempo em que trabalhava na fábrica, era chamada de “Pequena Flor” por seus colegas, devido à sua semelhança com a atriz principal do filme de mesmo nome. As variações em torno dessa história são interessantes; e foi apenas ao final, quando mostrada uma cena do filme Pequena Flor, que me dei conta de que a mulher era de fato a tal atriz, e que ela estava apenas interpretando o papel de uma funcionária.

Tudo bem, esse tipo de jogo perde muito da força pra quem está acostumado aos recentes documentários brasileiros, principalmente pra quem já viu Jogo de Cena umas sete vezes. Mesmo assim, não deixou de ser um momento de maior inspiração (em termos de técnica de documentário) que o resto do filme. Se é possível inferir que a inserção do depoimento dessa atriz contribui para a construção de um imaginário de época, ainda assim colocar em questão a ficcionalização da história da China parece fora de contexto, se pensarmos que isso não parecia interessar em Still Life e certamente é uma questão menor em 24 City – afinal, o que parecia importante eram as histórias que surgiam em meio ao modo de vida repetitivo da classe trabalhadora chinesa, e a maneira como as pessoas estão lidando com essas histórias agora que o espaço em que elas ocorreram está sendo modificado tão profundamente.

– 35 Doses de Rum, de Claire Denis. Estação Botafogo, 22h. Sou relativamente novo no cinema de Claire Denis, tendo assistido a apenas dois de seus filmes, ambos recentemente. O primeiro deles – talvez não a melhor introdução no estilo da cineasta – foi Trouble Every Day. Belo e absolutamente nojento e incômodo, esse filme me chocou de maneira quase repulsiva, pois cheguei a ele sem muitas informações prévias, apenas com uma leve intuição de qual seria o estilo de Denis.

Intuição que se mostrou correta quando assisti ao filme de estréia da diretora, Chocolat. Apesar de todo o estilo visual de Claire Denis ser facilmente perceptível em Trouble Every Day – que até potencializa de maneira bastante radical uma das principais características da cineasta, que é a de fazer um cinema da materialidade do corpo humano -, Chocolat sintetiza de maneira bem mais clara certos detalhes que eu esperava encontrar nos filmes de Denis: narrativa elíptica, dramaturgia bastante pontual e bem mais intuída do que efetivamente mostrada, captação de pequenos gestos e detalhes quase imperceptíveis, etc.

Cinema de pequenos gestos,...

Cinema dos pequenos gestos,...

Finalmente, em 35 Doses de Rum, vejo a melhor síntese desses elementos, em um filme simples que no entanto tem momentos de grande força. Em Chocolat, as características-chave do cinema de Denis, ainda que se fizessem presentes, encontravam-se diluídas entre outras preocupações, como o tom político evidente e bem mais direto, além de um flerte com questões de multiplicidade de pontos de vista e a mecânica da memória.

... superfície dos corpos,...

... da superfície dos corpos,...

O fiapo de narrativa de que parte 35 Doses de Rum (inspirado num filme de Ozu, Pais e Filhos) acaba funcionando melhor dentro da proposta de um filme de contemplação, da captura de gestos e da sensualidade dos corpos. A trama, ainda que não seja de todo desimportante, é bastante lacunar, e se desenvolve não por acontecimentos ou situações, mas por pequenos momentos que ilustram, e vez por outra significam ou alteram, as relações entre os personagens. Relações bastante difusas e pouco definidas, com exceção do grande afeto existente entre pai e filha.

O filme acompanha as trajetórias individuais desses personagens, se detendo

... de troca de olhares:...

... da troca de olhares:...

nos momentos em que essas trajetórias se encontram (mas não se limitando a eles). Não à toa, a melhor seqüência do filme é aquela que encapsula as tensões dramáticas (se é que podemos chamar assim) dos quatro personagens principais: o pai, a vizinha que parece ter atração por ele, a filha e o vizinho de cima que tem uma relação indefinida com ela. Todos eles vão juntos para um show; mas o carro enguiça no meio da rua e, em meio à chuva, eles resolvem se abrigar em um bar. Aqui há uma incrível cena de dança, em que o bailar dos corpos, as trocas de olhares, os pequenos toques, tudo é orquestrado de maneira precisa e sensível por Denis, numa seqüência que parece sintetizar o principal do seu cinema.

Se o filme tem falhas (uma certa barriga na viagem do pai e da filha à Alemanha; uma tentativa desnecessária de incluir tintas políticas através das discussões na faculdade da filha), elas se tornam mínimas diante de momentos de tanta potência visual, principalmente diante da perfeita captura dos corpos na mencionada cena da dança, em que fica evidente todo o prazer que pode proporcionar o cinema de Claire Denis.

 

os grandes prazeres do cinema de Claire Denis.

... os grandes prazeres dos filmes de Claire Denis.

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