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Posts Tagged ‘cinema português’

Dia 5 (terça-feira, 29 de setembro).

E agora me torno prisioneiro do meu próprio dispositivo – dois filmes por dia, cada um deles com um comentário de cerca de seis parágrafos tentando dar conta da experiência de assistir ao filme. Sempre seguro, sempre sabendo o que dizer, sempre pronto pra definir. “Exploração dos espaços”, “cinema de corpos”, “filme de superfícies”. Análises completas e totalizantes, falando o que o filme é, o que ele quis dizer.

Tudo bem, em todos os comentários me detive mais nas sensações que os filmes me passaram do que propriamente num esmiuçamento do “significado” do filme. E tudo bem que em todos os comentários as idéias me vieram durante a redação – o próprio ato de escrever, de pensar o filme, me fez ter uma noção melhor do que eu apreendi daquilo que eu havia visto. Um processo para se chegar ao filme a posteriori – e no entanto em várias ocasiões cheguei à conclusão de que a força maior do filme estava no momento da projeção, nas sensações imediatas.

Não que os filmes se esgotem e se limitem à sua duração – mas é ali que se encontra seu ápice, e tudo o que vier depois não estará à altura daqueles momentos. O que pode acontecer é que a reflexão posterior suscite idéias novas, forje ligações a partir da visão de conjunto do filme; e é nesses momentos então que é necessária uma revisão aproveitando-se de tudo o que foi pensado. E ainda assim, nesse caso, a força maior estará nesses dois momentos – visão e revisão dos filmes – e não na ponte entre eles.

Por isso, ainda não consegui descobrir o propósito deste blog. Não é crítica propriamente o que pretendo fazer, tampouco análises – ainda que, vez por outra, meus textos possam soar dessa forma. Posso até percorrer esses caminhos, mas esse não é o foco. Comentários, impressões – raspar a superfície numa tentativa de aprofundamento. É aí, mais uma vez, que o título do blog talvez faça sentido – através do espelho, escrever sobre os filmes para melhor apreciá-los, melhor compreendê-los (se compreender estiver em questão). O que parece ficar sugerido, então, é que é necessário fazer o caminho de volta, voltar pro lado de cá. E, pra isso, os filmes precisem ser vistos de novo (o que, em termos de filmes do Festival, pode não ser possível).

É o que ocorre comigo muitas vezes: só posso dizer que realmente vi determinados filmes depois de vê-los umas segunda vez. Mas não sei o quanto isso é válido. Talvez fosse o caso de parafrasear Heráclito e dizer que nunca se pode ver o mesmo filme duas vezes. A experiência sempre será totalmente diversa em cada uma das vezes. Mas estou divagando.

O problema que eu tive com um dos filems vistos terça-feira tem a ver com uma questão da maneira de olhar, do modo de se aproveitar um filme. Porque não estou certo de que se deva tentar entendê-lo durante sua projeção, intelectualmente falando. Em algum momento do referido filme, é dito algo como “só é possível entender uma história quando ela termina”. Então eu poderia dizer que essa primeira experiência de contato com um filme é (e deve ser) puramente sensorial, ao invés de ser uma relação que passe por uma análise intelectualizante. Mas obviamente não dá pra compartimentalizar as coisas dessa maneira. No fim das contas, é uma amálgama de experiência sensória com experiência intelectual, e a relevância de cada uma delas varia de filme pra filme.

De qualquer forma, é preciso encontrar alguma maneira de acessar o filme, estabelecer alguma relação com ele que não seja a de indiferença. Há filmes que instigam uma relação de repulsa ou ódio ou coisa similar, e vou ser honesto aqui e dizer que não procuro muito assistir a filmes desse tipo. Por outro lado, há filmes que parecem demandar uma série de pré-requisitos, conhecimentos prévios pouco usuais e uma vasta experiência cinematográfica para que seja possível usufruí-los minimamente. Sim, sim: estou falando de filmes do Godard.

Elogio ao Amor, de Jean-Luc Godard. Instituto Moreira Salles, 18h. Eu simplesmente não consigo me relacionar com um filme do Godard. Não consigo acessá-lo. Não vi quase nada dele, porque nunca me senti preparado, nunca achei que tivesse conhecimento suficiente para digeri-lo. Pode ser uma coisa minha, não sei.

O primeiro filme do Godard que eu vi foi em 2007, no primeiro período do meu curso de roteiro na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Cruzando essa data com algumas referências biográficas dadas alguns posts atrás, é possível perceber que nessa época eu tava engatinhando ainda no cinema. E o professor (Ruy Gardnier, editor da Contracampo, vejam só – na época eu nem sabia da existência da Contracampo) passou Duas ou Três Coisas Que Sei Dela (filme meio obscuro do Godard, pra vocês verem como a coisa começou). Não tenho certeza se ele passou o filme inteiro; creio que tenham sido alguns trechos. Mas os pedaços que vi… obviamente, fiquei completamente perdido, me sentindo absolutamente idiota. Não entendi nada do que se passou na tela.

Em seguida, vi Acossado. Um filme dele com o qual pude me relacionar melhor; os fiapos de narrativa e de trama foram suficientes pra me levar através do filme, e tratava de questões mais acessíveis. Ainda assim, havia muitos detalhes que eu sabia que estavam ali por um motivo, mas eu simplesmente não conseguia descobrir que motivo era esse. Além disso, dava para perceber pelo estilo do filme que o cara tinha um jeito de pensar bastante singular. O fato de ser o primeiro filme de Godard me fez ficar bastante pessimista quanto ao que viria a seguir.

Vi O Desprezo e Alphaville, filmes cujos fiapos de trama e narrativa calcada minimamente nos moldes tradicionais permitiram uma relação mais próxima. Claro, ainda hoje sinto que só arranho a superfície desses filmes, mas há algo ali que compreendo, e disso eu gosto. Mas há muito que por mais que eu pense e analise não consigo compreender. Fico simplesmente perdido em boa parte dos filmes.

Pode-se dizer que “não é pra entender”, e em parte concordo que às vezes achar explicações e significados pra tudo o que aparece é altamente redutor e idiota. Mas sempre achei isso uma postura meio preguiçosa de não querer ir além; aquela coisa de que, se é pra ficar na superfície das coisas, melhor ficar mudo e não dizer nada sobre nada. Além disso, sempre ouvi esse bordão de que “não é pra entender” em relação aos filmes do Lynch. Sei que não se trata de entender strictu sensu, mas no geral identifico as questões que ele aborda em seus filmes e consigo tecer uma análise sobre isso.

Com Godard, não consigo chegar nesse ponto. A incapacidade é minha, eu sei, o problema está em quem vê e não no que é visto. Mas há um ponto nisso tudo que parece independente da minha capacidade de compreensão, e é ele que vou abordar.

Em Elogio ao Amor, consigo identificar (e até me relacionar com e me interessar por) algumas questões. Na verdade, uma questão principal e outra que é levantada en passant. Entendo como ele trabalha com questões de História e de construção da memória (já mencionei que gosto desses temas), e vejo como os procedimentos técnicos do filme apontam pra isso – presente narrativo filmado em preto-e-branco e película, passado narrativo filmado em cores e em digital. Algumas das coisas faladas durante o filme também discutem isso.

Fora esse aspecto, tem a ótima cena dos produtores americanos querendo comprar a história de um casal de idosos franceses. A neta deles intervém e solta algumas críticas interessantes aos americanos (“vocês são um povo sem nome”). Mas isso é uma questão menor no filme.

Pronto, essa é a extensão do que eu entendi (em sentido estrito e lato) do filme. Sei que há muito mais que isso, mas por algum motivo – falta de experiência, de conhecimento, de capacidade intelectual de conjugar elementos, sei lá -, não consigo ir além.

E é aí que entra meu ponto. Vejam, é claro que depois desse desabafo todo não tenho nem como tentar parecer pretensioso (afinal de contas, acabei de admitir que não entendo Godard). Mas me considero um cara razoavelmente inteligente. E me parece que o problema (se é que “problema” é a palavra adequada aqui) não pode estar inteiramente em mim.

Godard é de fato um cara meio hermético, e com filmes bastante inacessíveis. São filmes, portanto, que pedem um esmiuçamento, uma análise detalhada, que obviamente não pode ser feita nem em uma nem em duas sessões do filme. É um cara pra ser pensado, muito antes de ser visto. Ou, ainda, seguindo o raciocínio que eu tinha feito antes – ser visto, ser analisado, ser revisto. Mas, no caso de Godard, é: ser visto, ser analisado, reanalizado, esmiuçado, estudado, revisto. E esse processo tem de se repetir algumas vezes.

Óbvio – ÓBVIO – que isso não é ruim. O cara te instiga a um processo de reflexão absurdo. Uma conclusão a que se chega (e que agora parece óbvia, e é mais uma constatação que uma conclusão, se eu for parar pra pensar) é que o Godard é um cineasta que pensa o cinema fazendo cinema. Mas esse pensar vem antes do fazer, no sentido de que o mais importante é a reflexão sobre o cinema (e daí para a reflexão sobre diversos outros assuntos mais profundos) do que a partir do cinema. Assim como Deleuze pensa o cinema através da escrita, Godard pensa o cinema através do cinema. Mas é um processo muito ensimesmado, parece que começa em termina em si mesmo, e no caminho passa por alguns lugares inatingíveis.

E aí a gente pega como exemplos caras como, sei lá, Machado de Assis e James Joyce, na literatura, ou Tarantino e De Palma, no cinema – eles pensam sua arte através dela mesma, mas nesse processo eles passam por (ou melhor, se utilizam de) conceitos bem mais palpáveis e envolventes. Tudo bem que Joyce não é leitura pra qualquer um, mas Machado tem algum nível de acessibilidade – é leitura obrigatória de escola. Tarantino e De Palma sem dúvida são bastante acessíveis; não conheço ninguém que não tenha gostado e se divertido ao ver algum filme de pelo menos um deles. São obras que atuam em vários níveis, e à medida que você estuda e ganha experiência de mundo, é possível atingir níveis mais profundos de entendimento. Mas partem de um primeiro nível bastante acessível.

Acessível pra quem?, é a pergunta. Pra mim, óbvio. Com certeza deve ter quem reclame que Tarantino e De Palma são muito estilizados e repelem qualquer envolvimento com a obra, que experimentam demais e tornam seus filmes inacessíveis. E, aí, é basicamente a mesma coisa que tou falando do Godard.

Essa questão também pode enveredar por outro lado: e quem disse que essas obras têm de ser acessíveis, quem disse que é preciso “rebaixá-las” para que pessoas com menos “bagagem cultural” possam se relacionar com elas?

Não digo que elas devam ser simplificadas e tenham seu conteúdo diluído para que mais pessoas possam – ham-ham – “entendê-las”. Não é obrigação de nenhum artista fazer com que suas obras sejam compreensíveis, ou que as pessoas possam se relacionar com elas. Apenas prefiro – e acho mais justos – aqueles que o fazem. Principalmente porque me parece um desafio maior, e prova de maior talento, quando alguém consegue fazer conceitos complexos serem apreendidos por qualquer um.

Vejo muitos acadêmicos e teóricos analisando profundamente as obras do Tarantino e do De Palma, e eu gosto dos filmes deles desde que eu tinha 14 anos. Da mesma forma, vejo os mesmo acadêmicos e teóricos fazendo análises igualmente profundas das obras de Godard – mas não conheço nenhum garoto de 14 anos que tenha conseguido se apaixonar por elas.

Mas eu só tenho vinte. Talvez – apenas talvez – ainda haja tempo.

Como Desenhar um Círculo Perfeito, de Marco Martins. Estação Vivo Gávea, 20h10. Pavoroso. Excessivamente melodramático, de mal gosto, dramaturgia porcamente trabalhada (ainda que o filme pareça confiar em sua narrativa “elíptica”, que amontoa um punhado de situações clichês para que seu protagonista totalmente imbecil entre em colapso), tentativas óbvias ou incompreensíveis pra metaforizar tudo que é mostrado no filme, e com uma pedância insuportável. É preciso se segurar pra não fazer trocadilhos infames com o título do filme e falar pro cara aprender como fazer um filme direito.

A quarta-feira de Manoel de Oliveira e Herzog foi um remédio muito bem-vindo.

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