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Posts Tagged ‘narrativa elíptica’

“Fiz isso durante algum tempo, ouvir, prestar atenção, interpretar e contar, fiz como trabalho remunerado durante esse tempo, mas vinha fazendo desde sempre e continuo, passiva e involuntariamente, sem esforço e sem recompensa, já é certo que não posso evitá-lo ou que é minha maneira de estar no mundo, vai me acompanhar até a morte, descansarei disso então. Mais de uma vez me disseram que era um dom que eu tinha, como me mostrou Peter Wheeler, que foi quem me alertou ao me explicar e descrever tal dom, as coisas só passam a existir quando você as nomeia, isso todo mundo sabe ou intui. Esse dom, ao contrário, eu vejo às vezes como uma maldição, e olhe que agora costumo cingir-me às três primeiras atividades, que são caladas, interiores, da consciência, e não têm por que afetar ninguém além de quem as exerce, e só conto quando não tem mais remédio ou me pedem insistentemente. Porque, na minha época profissional de Londres, ou digamos recompensada, aprendi que o que tão-só acontece mal nos afeta ou não mais do que o que não acontece, mas seu relato sim (também o do que não acontece), que é indefectivelmente impreciso, traiçoeiro, aproximado e no fundo nulo, e no entanto quase a única coisa que conta, a decisiva, a que transtorna nosso ânimo, nos desvia e envenena nossos passos, e seguramente faz girar a preguiçosa e frágil roda do mundo.

Não é gratuito, não é um capricho que na espionagem, ou nas conspirações, ou no delito, o saber dos que participam de uma missão, de uma maquinação ou de um golpe – do clandestino, do sub-reptício –, seja difuso, parcial, fragmentário, oblíquo, que cada um esteja a par apenas de sua tarefa mas não do conjunto nem do objetivo final. Vimos isso nos filmes, como o guerrilheiro da Resistência que prevê não sair vivo da próxima emboscada, ou do atentado que prepara, e diz à namorada na despedida: “É melhor que você não saiba de nada, assim, quando te interrogarem, dirá a verdade ao dizer que não sabe, a verdade é fácil, tem mais força, é mais crível, a verdade persuade”. (E é verdade que a mentira exige capacidade de fabulação e de improvisação, e inventiva, memória férrea, arquiteturas complexas, todos a praticam mas são poucos os capacitados). Ou como o cérebro que planejou o grande assalto, o que concebe e dirige, instrui seu comparsa ou um esbirro: “Se você só conhecer sua parte, mesmo que te peguem ou você falhe, a coisa terá seguimento”. (E é verdade que sempre se pode admitir que um elo se solte ou se produza alguma falha, não se chega ao fracasso definitivo tão rápido nem é tão simples, toda a empresa ou ação resiste e se debate antes de vir abaixo). Ou como o chefe do Serviço Secreto sussurra ao agente de quem suspeita e em quem não confia mais:  “Sua ignorância é o que mais te protegerá, não pergunte mais, não pergunte, será sua salvação e seu salvo-conduto”. (E a melhor maneira de evitar traições é que nada se preste a elas, ou que consistam em blefe, seu conteúdo sem valor nem peso, casca, frustração para quem paga por elas). Ou como o que encomenda um crime, ou o que ameaça com um, ou o que deixa a nu seus podres expondo-se a uma chantagem, ou o que compra às escondidas – a gola do capote erguia e a cara sempre à sombra, nunca acenda o cigarro – avisa ao assassino de aluguel, ou ao ameaçado, ou ao possível chantagista, ou à comutável mulher já esquecida no desejo e que mesmo assim nos envergonha: “Já sabe, a partir de agora você nunca me viu, não sabe quem sou, não me conhece, não falei com você nem te disse nada, pra você não tenho rosto nem voz nem bafo nem nome, nem mesmo nuca ou costas. Não houve nem esta conversa nem este encontro, o que sucede aqui diante dos seus olhos não ocorreu, não está acontecendo, você não ouviu estas palavras porque eu não as pronunciei. E embora você as ouça agora, não as digo”.

(Calar-se, e apagar, suprimir, cancelar, e já ter calado antes: é a grande aspiração impossível do mundo, por isso ficam tão poucos os sucedâneos, e é pueril retirar o dito e fazer uma retratação tão vazia; por isso é tão irritante – porque a única coisa que pode incutir a dúvida e ser às vezes eficaz, de modo inverossímil – a negação extremada, negar ter dito o formulado e ouvido e negar ter feito o cometido e sofrido, é desesperador que se possa cumprir sem fissuras e com todo rigor o que essas palavras de antes anunciam, possíveis na boca de tantos e tão diferentes, do indutor e do ameaçador, de quem pressente a chantagem e do que paga seus prazeres ou sucessos furtivamente, e também na boca de um amor ou de um amigo, e então nos atinge com elas o desespero de sermos negados).

Todas essas frases que vimos pronunciadas no cinema eu disse, ou me dispararam, ou ouvi de outros ao longo da minha existência, isto é, na vida, que guarda muito mais relação com os filmes e a literatura do que normalmente se reconhece ou se acredita. Não é que um imite o outro ou o outro o um, como se afirma, mas que nossas infinitas fantasias também pertencem à vida e contribuem para ampliá-la e complicá-la, e para torná-la mais turva e ao mesmo tempo mais aceitável, embora não mais explicável (ou sim, muito de vez em quando). É muito tênue a linha que separa os fatos das fantasias, e também os desejos da sua consumação, e o fictício do acontecido, porque na realidade as fantasias já são fatos, e os desejos sua consumação, e o fictício acontece, embora nada disso seja desse modo para o senso comum ou para as leis, que por exemplo estabelecem uma abissal diferença entre a intenção e o delito, ou entre seu cometimento e sua tentativa. Mas a consciência não tem presente as leis, nem o senso comum lhe interessa ou atine, somente a cada consciência seu sentido próprio, e essa linha tão tênue que muitas vezes se esfuma, de acordo com a minha experiência, e não separa mais nada quando desaparece, de modo que aprendi a temer o que passa pelo pensamento e inclusive o que o pensamento ainda ignora, porque vi quase sempre que tudo já estava ali, em algum lugar, antes de chegar a ele ou atravessá-lo. Aprendi a temer, portanto, não apenas o que se concebe, a idéia, mas o que antecede ou é anterior a ela. E assim eu sou minha própria dor e minha febre”.

Seu rosto amanhã – [vol 1.] Febre e lança, de Javier Marías.

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Michel Bulteau, rue de Téhéran, Paris, janeiro de 1978. Não sei como conseguiu meu telefone, mas uma noite, devia ser mais de meia-noite, ligou para minha casa. Perguntou por Michel Bulteau. Eu disse: sou eu. Ele disse: sou Ulises Lima. Silêncio. Eu disse: bem. Ele disse: que bom ter encontrado você em casa, espero não ter acordado você. Eu disse: não, não acordou. Silêncio. Ele disse: gostaria de vê-lo. Eu disse: agora? Ele disse: bom, é, agora, posso ir à sua casa, se você quiser. Eu disse: onde você está?, mas ele entendeu outra coisa e disse: sou mexicano. Eu me lembrei então, muito vagamente, que havia recebido uma revista do México. O nome Ulises Lima, em todo o caso, não me era familiar. Eu disse: já ouviu os Question Mark? Ele disse: não, nunca ouvi. Eu disse: acho que são mexicanos. Ele disse: os Question Mark? Quem são os Question Mark? Eu disse: um grupo de rock, evidentemente. Ele disse: eles tocam mascarados? Num primeiro momento não entendi o que ele disse. Mascarados? Não, é claro, não tocam mascarados. Por que tocariam? No México há grupos de rock que entram em cena mascarados? Ele disse: às vezes. Eu disse: parece ridículo, mas pode ser interessante. De onde está telefonando? Do hotel? Ele disse: não, da rua. Eu disse: você sabe como chegar à estação de metrô Miromesnil? Ele disse: sei, sei, nenhum problema. Eu disse: daqui a vinte minutos. Ele disse: estou indo pra lá e desligou. Enquanto eu vestia o blusão, pensei: mas nem sei que cara ele tem! Que cara têm os poetas mexicanos? Não conheço nenhum! Só uma foto de Octavio Paz! Mas este, eu intuía, com certeza não se parecia com Octavio Paz. Pensei então nos Question Mark, pensei em Elliot Murphie e em algo que Elliot me disse quando estive em Nova York: a caveira mexicana, o cara que chamavam de a caveira mexicana e que só vi de longe num bar da Franklin Street com a Broadway, em Chinatown, a caveira mexicana era um músico, mas eu só vi uma sombra, e perguntei a Elliot o que tinha aquele cara que ele queria me mostrar, e Elliot disse: é uma espécie de lagarta, tem olhos de lagarta e fala feito lagartas. Como falam as lagartas? Com palavras duplas, Elliot disse. Bom. Estava claro. E por que o chamam de caveira mexicana?, perguntei. Mas Elliot já não ouvia ou estava falando com outro, de modo que supus que o cara, além de ser magro feito um cabo de vassoura, devia ser mexicano ou devia dizer ao mundo que era mexicano ou devia ter ido ao México em algum momento da vida. Mas não o vi de cara, só sua sombra atravessando o bar. Uma sombra sem metáforas, vazia de imagens, uma sombra que só era uma sombra e que assim já bastava. Então vesti o blusão preto, escovei os cabelos e saí à rua, pensando no desconhecido que tinha me telefonado e na caveira mexicana entrevista em Nova York. Da rue de Téhéran à estação do metrô Miromesnil dá só uns quinze minutos,  andando a bom passo, mas é preciso atravessar o Boulevard Haussmann, depois percorrer a avenue Percier e parte da rue de La Boétie, ruas que a essa hora são quase mortas, como se, a partir das dez da noite, fossem bombardeadas com raios X, e pensei então que teria sido melhor marcar o encontro com o desconhecido na estação Monceau, o que me teria levado a fazer o caminho inverso, da rue de Téhéran à rue de Monceau, depois à avenue Ruysdael, então a avenue Ferdousi, que cruza o parque Monceau, cheio, naquela hora, de drogados, traficantes e policiais melancólicos, policiais chegados ao parque Monceau vindos de outros mundos, trevas e lentidões que preludiam a aparição da Place de la Republique Dominicaine, um lugar afortunado para um encontro com a caveira mexicana. Mas meu itinerário era outro e o segui até as escadas da rue Miromesnil, que encontrei desertas e imaculadas. Confesso que nunca como nessa noite as escadas do metrô me pareceram tão sugestivas e ao mesmo tempo tão impenetráveis. Seu aspecto, porém, era o mesmo de sempre. O ponto de inflexão eu logo descobri, quem o colocava eram eu e minha aquiescência em me encontrar com um desconhecido em horas intempestivas, algo que em geral não costumo fazer. Tampouco, por certo, tenho o costume de me esquivar dos convites do acaso. Ali estava eu, e era isso que contava. Mas, além de um funcionário que lia um livro e certamente esperava alguém, não havia ninguém nas escadas. De modo que comecei a descer, decidido a esperar cinco minutos, depois ir embora e esquecer por completo esse incidente. Na primeira virada, encontrei uma velha enrolada em farrapos e papelões, dormindo ou fingindo dormir. Alguns metros mais adiante, olhando para a velha como quem olha para uma cobra, vi um cara de cabelos compridos e negros, cujos traços talvez pudessem corresponder aos de um mexicano, embora a esse respeito minha ignorância seja abissal. Parei e o observei. Era mais baixo do que eu, usava um casaco de couro bastante puído, tinha quatro ou cinco livros debaixo do braço. De repente pareceu acordar e cravou os olhos em mim. Era ele, sem dúvida. Ele se aproximou e me estendeu a mão. Um aperto estranhíssimo. Como se, ao apertar a mão, introduzisse um misto de sinais maçônicos e senhas do submundo mexicano. Um aperto de mão, de qualquer modo, coceguento e morfologicamente estranho, como se a mão que me apertava a mão carecesse de pele ou fosse só uma capa, uma capa tatuada. Mas esqueçamos a mão. Eu lhe disse que fazia uma linda noite e que fôssemos dar uma volta. Parecia que ainda estávamos no verão, eu disse. Ele me acompanhou em silêncio. Por um momento temi que fosse falar durante todo nosso encontro. Dei uma olhada em seus livros, um deles era meu, Ether-Mouth, outro era de Claude Pelieu, e os demais provavelmente eram de autores mexicanos de quem eu nunca tinha ouvido falar. Perguntei a ele quanto tempo fazia que estava em Paris. Muito tempo, respondeu. Seu francês era lamentável. Sugeri que falássemos em inglês, e ele aceitou. Caminhamos pela rue Miromesnil até o Faubourg St. Honoré. Nossos passos eram largos e rápidos, como se, tendo pouco tempo, nós nos dirigíssemos a um encontro importante. Não sou uma pessoa que gosta de andar. Mas naquela noite andamos sem parar, a toda velocidade, pelo Faubourg St. Honoré até a rue Boissy d’Anglas e dali aos Champs Elysées, onde tornamos a virar para a direita, até a avenue Churchill, onde viramos à esquerda, deixando às nossas costas a sombra equívoca do Grand Palais, diretos para a ponte Alexandre III, sem reduzir o passo, enquanto o mexicano ia desfiando, num inglês por momentos incompreensível, uma história que me custava entender, uma história de poetas perdidos, de revistas perdidas e de obras sobre cuja existência ninguém sabia palavra, em meio a uma paisagem que talvez fosse da Califórnia ou do Arizona ou de alguma região mexicana limítrofe com esses estados, uma região imaginária ou real, mas desbotada pelo sol e num tempo passado, esquecido ou que, pelo menos aqui, em Paris, na década de 70, já não tinha a menor importância. Uma história extramuros da civilização, eu disse a ele. E ele disse sim, sim, aparentemente sim, sim, sim. E perguntei a ele então: quer dizer que nunca ouviu falar dos Question Mark? Ele respondeu não, nunca ouvi. E eu lhe disse que precisava ouvi-los um dia, que eram muito bons, mas na realidade eu disse isso porque já não sabia o que dizer”

Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño.

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“De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro”.

O encontro marcado, de Fernando Sabino.

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Lost é uma das séries de televisão mais interessantes dos últimos anos, e talvez a que melhor brinque com as convenções estruturais e estilísticas do meio. O seriado se reinventa a cada temporada, ampliando seu escopo narrativo e temático de uma maneira que não se esperaria em produtos de massa americanos. Ainda que se possa discutir a afirmação de que, na última década, a dramaturgia televisiva dos Estados Unidos foi mais original e revigorante que o cinema de Hollywood, Lost sem dúvida é um indício de que não se pode questionar a qualidade das séries americanas.

Ironicamente, apesar de isso aqui ser um blog, apenas tangenciarei um dos pontos mais marcantes da interação de Lost com o público, que é a maneira como a série se expande na internet, através de A.R.G.’s (Alternative Reality Games), virais, podcasts e afins; meu foco aqui é analisar o produto em si mesmo, destrichando os interessantes procedimentos audiovisuais utilizados pela série. Por mais interessantes que sejam as ramificações do seriado na internet, elas fazem parte de uma outra discussão, na qual não pretendo me aprofundar (não ainda). Também não vou teorizar muito sobre a mitologia e os mistérios de Lost, nem nos textos sobre as temporadas, nem em críticas individuais dos episódios.

Aqui, portanto, falarei apenas de como os temas da série são articulados tanto na estrutura dramática quanto audiovidual dos episódios.

1) Da organização dos fragmentos.

A principal operação de Lost se baseia naquilo que não é mostrado, naquilo que a imagem apenas sugere, mas nunca explicita. O suspense aqui é elevado ao paroxismo, e a série inteira é um jogo de situações que não se resolvem, mistérios que se multiplicam em si mesmos, tramas paralelas que se intercalam e se interconectam e não levam a lugar algum, perguntas cujas respostas apenas levantam mais dúvidas.

Eles vêem o reflexo do piloto na água...

... e apenas depois descobrem o seu corpo na árvore.

É aí que o título da série, ainda que por demais óbvio, faz sentido na sua dupla camada de atuação: ela se interessa tanto pelos personagens – perdidos literal e metaforicamente – quanto pelo jogo narrativo que brinca com estruturas e convenções, juntando fragmentos auto-suficientes que, apesar disso, são regidos por uma força maior – fazendo o espectador ficar, ham-ham, “perdido”.

Vejamos:

Há, é claro, a intenção de contar as histórias daquelas pessoas, ver as rupturas e os engessamentos provocados por uma situação-limite (ou: como o desastre fê-las repensar suas maneiras de se portar no mundo ao mesmo tempo que traz à torna e fortalece suas mais arraigadas obsessões), e.g., Jack extrapola sua necessidade de consertar coisas, ao mesmo tempo em que questiona sua capacidade de liderar; Locke se torna cada vez mais um “homem de fé”, mas vêessa fé ser colocada à prova de maneira cada vez mais decisiva. E assim por diante.

Uma luz surgiu quando Locke estava perdendo a fé na Ilha.

A própria estrutura narrativa que Lost segue é prova do seu interesse nas histórias pessoais: episódios centrados em um personagem específico, intercalando a trama presente dos acontecimentos na ilha com flashbacks investigando causas, motivos, razões para a maneira de ser daquele personagem (numa das muitas rimas entre o “núcleo estrutural” e o “núcleo dramático“, mostrando que tentar dividir forma e conteúdo é realmente sem sentido).

Temos, portanto, personagens em suspensão, cuja única preocupação é do tempo presente – sobreviver mais um dia, até a chegada de um possível, mas cada vez mais improvável, resgate -, pelo menos nessa primeira temporada. E, no entanto, essa linha narrativa do presente é a única que tem uma duração propriamente dita, que estabelece relações temporais, que se conecta episódio a episódio.

Por outro lado, há uma tentativa de dar um fundamento, uma base a esses personagens que estão suspensos num tempo presente aparentemente sem amarras (como eu disse, “causas, motivos, razões para a maneira de ser daquele personagem”). Porque, no que seria uma situação de superfícies, do limite, nervos à flor da pele, na qual todas as preocupações características da vida moderna deveriam sumir, inevitavelmente emergem questões mais profundas, traumas e lembranças que os personagens não podem reprimir.

E é aí que surge a interessante dialética das instâncias temporais em Lost. Porque é o tempo presente que tem um encadeamento de causalidade, é a trama da ilha que precisa se reportar diretamente ao que é visto na semana anterior. Ao passo que os flashbacks são mais auto-suficientes, fechados em si mesmos – pelo menos nesse começo, quando ainda não temos mais nenhuma informação sobre esses personagens. À medida que nos aproximamos do final da temporada, há personagens que chegam a receber segundos e até terceiros flashbacks – mas nem sempre é possível relacioná-los uns com os outros de maneira precisa. Eles não são exatamente completementares, e podem se contradizer (se não em termos gerais, ao menos nos detalhes).

[obs.: mas isso vai gradativamente diminuindo, causando o grande problema da série na segunda e na terceira temporadas, que é o fato de o esquema narrativo dos flashbacks se tornar redundante: os roteiristas ficam presos ao dispositivo, que passa a mostrar tramas que apenas reiteram aquilo que já sabíamos sobre os personagens, que em alguns momentos acabam se tornando caricaturas de si mesmos]

Ou seja: em Lost, a situação-limite que se apresenta catalisa uma miríade de memórias de acontecimentos, que se relacionam mais com o presente do que entre si. Melhor dizendo: são essas memórias (o passado dos personagens, dir-se-ia sua essência) que forçam caminho e vêm à superfície nesse primeiro contato com o desastre.

Jack tem visões de seu pai andando na ilha.

O movimento aqui ainda é do passado para o presente; como em White Rabbit, primeiro episódio centrado exclusivamente em Jack, é o flashback que organiza o que acontece na ilha – apenas tomando como base a vida pregressa de Jack podemos entender suas reações ao que o cerca. Ao passo que, nas temporadas seguintes, esse movimento começa a se inverter sutilmente.

É como se aquela ilha fosse o ápice, e ali as pessoas vivem o resumo de suas vidas, uma versão miniaturizada dos obstáculos que encontraram. Jack precisa confrontar o fantasma (literal e metafórico) de seu pai, ao mesmo tempo em que sua necessidade de consertar as pessoas (“to fix things“) é trazida à tona a todo o momento. Kate se vê obrigada a manter-se em um único lugar, quando desde sempre sua inclinação natural foi fugir (o que é até salientado de maneira um pouco excessiva nessa primeira temporada especificamente, mas também na série toda de maneira geral, com poucas

James Ford lê a carta que escreveu quando criança para o verdadeiro Sawyer.

exceções). Locke finalmente pode realizar seu walkabout, mas ele precisa renovar sua fé quase diariamente pra que isso seja possível. Sawyer tem a chance de escolher se ele será realmente Sawyer, o homem que perseguia, ou se ficará livre para ser James Ford. E assim por diante.

Dessa maneira, fica estabelecido o principal procedimento de Lost: aquele que de certa forma reúne os fragmentos em suspensão sob um poder organizador que tenta relacionar elementos aparentemente díspares (e há de se notar que isso se articula com o grande tema da série, que é a dicotomia entre livre-arbítrio e destino).

As peças do jogo.

2) Os personagens não podem ser meros peões.

Nessa primeira temporada, contudo, por mais que esse tema esteja presente no subtexto, ele raramente se torna latente (“That’s why the Red Sox will never win the damn series” é o mote do pai de Jack). É o começo de tudo, e essa força maior ainda precisa ficar sob a superfície. O que interessa, no início da série, é estabelecer os personagens, fazê-los se encontrarem e desse encontro fazer surgir uma possibilidade de redenção. No meio de todas as inventividades narrativas e estruturais, é preciso ter alguns dos mais clássicos valores – nós temos de nos importar com os personagens. E, para além da obviedade de fazer o espectador entrar na história – que não se sustentará sozinha com base apenas em mistérios e cliffhangers , pois é preciso que nos importemos com aquele que está pendurado no precipício -, há uma importância temática e conceitual para isso.

As regras desse jogo vão ficando mais claras nas temporadas seguintes, mas é preciso que os personagens não sejam meras peças em um tabuleiro de xadrez. Não apenas porque ninguém vai se importar com os peões, mas porque é preciso que eles tenham alguma auto-suficiência. É preciso que haja base para seus atos, motivos para as suas escolhas – eles pensam e agem, calcados em alguma noção de livre-arbítrio. Isso é fundamental para a dialética da série; não há como ela funcionar se os personagens forem arquetípicos e rasos, porque aí a balança vai pender apenas para um lado – o lado da força maior totalizante, a idéia de predestinação. E é preciso que a outra força motriz também seja relevante – a força das multiplicidades, o livre-arbítrio, o poder das escolhas. Esses fragmentos precisam funcionar como conjunto, mas também precisam ter autonomia. Caso contrário, tudo se torna menos que um jogo, é apenas um colocar de peças no quebra-cabeças por agentes maiores que vêem a figura na caixa, ao passo que nós não temos idéia de que imagem o quebra-cabeças vai formar – e nem nos importamos, porque as peças não nos interessam individualmente.

Relação quase incestuosa entre os irmãos adotivos Shannon e Boone

Sayid envergonha-se por ter torturado Sawyer.

Assim, Lost se esforça em sua primeira temporada para que entendamos e nos importemos com cada uma dessas peças, apenas sugerindo que tipo de figura elas vão formar quando colocadas em seu devido lugar.

3) A construção da imagem em Lost.

Essa sugestão é um dos pontos mais interessantes em Lost, porque diz respeito a uma maneira de encarar a ficção que não se vê muito hoje em dia, principalmente em Hollywood. A preocupação está em construir uma imagem (peças soltas e fragmentadas se interconectando), mais do que exatamente mostrar uma imagem. Desde o primeiro plano da série (um close-up de um olho se abrindo) essa preocupação – mais metonímica do que metafórica – fica evidente.

Essa primeira cena é um exemplo perfeito de como Lost opera. Após o close-up no olho de Jack, há o contraplano das árvores acima dele, se movendo ao vento.

Toda a dialética da série já está aí: homem vs. natureza, indivíduo vs. ambiente que o rodeia, específico vs. geral, etc. etc. Em seguida, um plano fechado no rosto de Jack, que aos poucos se afasta para revelá-lo deitado sobre o chão da floresta – mais uma vez, a operação clássica de Lost: partir do detalhe, do específico, para chegar ao universal, ao todo.

Um cachorro que ronda, um tênis pendurado na árvore – pequenos elementos de um quase surrealismo, uma estranheza de um mundo fantástico que apenas se insinua. Jack corre até a praia. Gritos, barulhos de metal, indícios de tragédia – tudo fora de campo. Apenas o som se sobrepondo à imagem pacífica de Jack numa praia paradisíaca. Jack avança, e apenas aí irrompem na tela as imagens de destroços, de gente gritando, da tragédia anunciada fora da tela. Destroços de um avião que, mais adiante, estará reconstruído e inteiro no primeiro flashback (e ainda assim, mesmo que o saibamos inteiro, não o vemos todo: enxergamos apenas sua asa pela janela de Jack).

Novamente, o procedimento clássico de Lost: reconstruir, a partir de fragmentos (de destroços), um todo; entretanto, é apenas a idéia, a noção de um todo, de um inteiro, pois a imagem permanece fragmentária e sugestiva.

Em toda a temporada (assim como em toda a série), essa idéia de “reconstrução” fica evidente. A própria maneira como os flashbacks nos são apresentados enfatizam isso. Eles se estruturam a partir de elementos vistos na ilha, no tempo presente, e daí reconstroem o passado do personagem. Esses elementos são variados: objetos (as algemas de Kate, a cadeira de rodas de Locke, a revista em quadrinhos de Hurley), frases que se repetem nas duas instâncias temporais (“don’t tell me what I can’t do“, “The Red Sox will never win the series“), rimas visuais (Locke caído no chão, Michael e Walt), personagens que aparecem nos flashbacks uns dos outros. São todas peças que se encaixam, mas nem sempre da maneira que esperávamos (aliás, na maioria das vezes são revelações surpreendentes).

Nesse sentido, Lost reconfigura a todo momento nossas expectativas (a figura da caixa do quebra-cabeças – a imagem que esperávamos que ele fosse formar – muda a todo momento). Essa frustração se dá pela reorganização das peças de uma maneira inesperada (Kate fugitiva, Locke na cadeira de rodas, relação de Jin e Sun, Hurley milionário, a carta de Sawyer, etc.), o que cria os cliffhangers em torno dos quais a série muitas vezes se estrutura: a mensagem de Rousseau, a descoberta de que Ethan não estava no avião, a luz da escotilha se acendendo, os números na beira da escotilha…

Uma das representaçãos visuais mais contundentes e interessantes desse procedimento de reconstrução através do novo encadeamento de peças é a balsa que os personagens constroem para escapar da ilha. A metáfora é perfeita: as peças, os destroços do avião, são a matéria-prima a partir da qual os sobreviventes criarão sua maneira de sair da ilha. O que causou a tragédia traz a possibilidade de salvação (e esse conceito cresce e se aprofunda se aceitarmos a idéia de que foi a ilha que causou o acidente, mas também será ela que proporcionará a redenção para esses personagens). A balsa partindo me parece uma das imagens mais poderosas dessa primeira temporada: não só ela aponta para o uso de elementos da tragédia serem possíveis para a salvação, mas reorganiza esses elementos. Porque a balsa não seria possível apenas com o que restou do avião: é preciso utilizar matéria-prima da ilha – bambus, pedaços de madeira – para poder reunir essas peças numa nova configuração. Ou seja, a própria ilha, o próprio lugar que os prende é o lugar que lhes dá possibilidades de escapar.

Nessa primeira temporada, os tais cliffhangers que permitem a reorganização dos elementos de maneira surpreendente são de fato bastante orgânicos. Há a sensação de um mistério que não tem como ser conhecido ainda, porque não temos ferramentas para isso (nem os personagens), e porque existe algo (ou alguém) que nos impede de conhecê-los. Claro, os roteiristas deliberadamente escondem informações de nós, mas aqui isso faz sentido. Aqui ainda estamos no mesmo patamar que a maioria dos personagens, e por mais que inevitavelmente aos poucos ganhemos informações e nos desprendamos deles, nesse início a narrativa ainda é estritamente “como sobreviver neste lugar estranho”. Estamos presos ao entendimento que os personagens têm desse mundo.

Há um caso específico que me vem à mente. O episódio Walkabout, quarto dessa primeira temporada, é centrado em John Locke. Começamos a perceber aqui que ele possui algum tipo de comunhão especial com ilha, que aos poucos vamos aprendendo ser baseada puramente na fé. Como tal, essa comunhão passa longe de provas empíricas e se relaciona mais com um estado de espírito.

"I looked into the eye of this island, and what I saw... it was beautiful"

Por isso, não soa forçado que, quando John se encontra com o monstro em determinado momento do episódio, não nos seja permitido ver o que a criatura é efetivamente. Para além de interpretações de que nós somos o monstro, o que interessa aqui é que esse momento está além da representação visual. Não é assim que os mistérios devem ser respondidos. Pelo mesmo motivo, soa natural (e não um truque dos roteiristas para nos esconder “respostas”) que John não mencione seu encontro com o monstro a ninguém, e que depois se refira ao fato para Jack apenas como “I looked into the eye of this island, and what I saw… it was beautiful“.

[obs. 1: Também é interessante que não vejamos o monstro se considerarmos que ele tem formas e significados diferentes para cada um que o vê. Da mesma maneira, faz sentido que, quanto mais informação tenhamos acerca do monstro, mais nebulosa fique sua real natureza. Temos apenas uma multiplicidade de definições para ele, nenhuma sendo totalizante, nenhuma dando conta do que ele realmente possa ser. É um conceito meio parecido com o monstro de The Thing, filme do John Carpenter. E, nessa mesma toada, me parecem estar os números – são simplesmente uma metáfora para nossa tentativa de organizar o caos a nossa volta. Por isso que, da mesma forma que o monstro, aos números são atribuídos diferentes funções e sentidos, nenhum deles parecendo ser exatamente correto, mas todos fazendo algum sentido]

Claire sonha com Locke...

... e Locke sonha com Boone.

[obs. 2: Esse aspecto das perguntas que os personagens se fazem, e de como eles lidam com os mistérios, é um dos que mais se deteriorou desde a primeira temporada. Aqui, eles ainda estavam investidos em buscar respostas, em entender o que diabos estava acontecendo, por mais que o foco estivesse em sair da ilha. É irônico que, na mesma medida em que escapar foi gradativamente deixando de ser prioridade, o entendimento dos mistérios também deixou de ser uma preocupação para os personagens. A ligação de Locke com a ilha passa longe de ser algo racional (e que portanto possa ser explicado e mostrado em forma de “resposta para os mistérios”); Claire tem amnésia depois que escapa de seu captor; Rousseau perdeu boa parte da sanidade após 16 anos sozinha na ilha – todas ainda são desculpas coerentes (tanto que não soam como “desculpas” – a não ser, talvez, o negócio da amnésia) para que nós não tenhamos maiores esclarecimentos sobre os mistérios. Mas há um limite para nossa aceitação desses dispositivos, um limite que, se ultrapassado, compromete nosso envolvimento com os personagens. A partir do momento em que eles se recusam a dar quaisquer informações uns aos outros e, pior, a pedir quaisquer informações uns aos outros, a base necessária para a série funcionar é prejudicada. Mas lidemos com isso quando essas falhas aparecerem (mais notadamente a partir da terceira temporada). Por ora, a construção do suspense ainda é absolutamente bem trabalhada, e todas as ações dos personagens fazem sentido]

Outro ponto importante da série é a trilha sonora de Michael Giacchino. Muito do que há de épico em Lost vem da música arrepiante, emocionante, que ajuda a construir o sentido da narrativa tanto quanto qualquer outro elemento. Às vezes melodias sutis e calmas, às vezes sons cortantes e bruscos, a trilha quase sempre eleva e expande o sentimento inerente à cena; entretanto, há momentos em que a relação é dialética, sugerindo tensões por vir ou criando doçura em momentos sombrios.

Por fim, há diversas situações em que a música se confunde com o som ambiente; barulhos que não sabemos precisar se são parte da trilha sonora ou do mundo interno da narrativa. Essa situação fica mais evidente nas aparições do monstro, que são acompanhadas por uma banda sonora que é difícil de identificar. Essa sensação é amplificada pelo fato de que boa parte da percussão utilizada na trilha sonora foi feita com os objetos de cena usados como destroços do avião – asas de metal, tábuas, plásticos, e afins.

Há outros casos específicos na primeira temporada em que a música diegética (música tocada dentro da história que se conta) se transforma em trilha sonora. Quando Shannon canta a música La Mer, e aos poucos surge ao fundo uma melodia acompanhando-a. Ou quando Hurley ouve Delicate, de Damien Rice, em seu discaman – a música embala os momentos finais do episódio, tornando-se trilha sonora para as ações dos personagens; entretanto, ela é subitamente interrompida, e descobrimos que as pilhas do aparelho de Hurley apagaram.

4) A construção da narrativa em Lost.

A temporada tem um ritmo constante, sempre construindo calmamente os relacionamentos, dando o tempo necessário à evolução dos personagens.

Os nove primeiros episódios focam-se principalmente em estabelecer a relação de cada um dos personagens, tanto entre si como com a ilha. Jack assumindo a liderança, Locke provendo alimento com suas habilidades de caça, Sawyer causando desequilíbrio ao tomar certos itens para si, Sun e Jin sempre isolados, etc. Nesse sentido, a série ainda se aproximava do plano original de Jeffrey Lieber, primeiro roteirista do episódio piloto, cuja idéia girava apenas em torno de sobreviventes de um desastre aéreo em uma ilha (apenas depois da chegada de J. J. Abrams e Damon Lindelof que foram adicionados os elementos de mistério e de ficção científica, tornando a ilha um ambiente fantástico).

Nesse ponto da temporada, ainda há de fato um interesse maior em tentar diagnosticar como esse grupo de indivíduos bastante díspares consegue se reorganizar em uma espécie de simulacro diminuto de sociedade. Por isso, a mudança da praia para as cavernas não se trata apenas de se aproximar de uma fonte de água e de se proteger. Também é, de certa forma, uma questão política, em que as diferentes abordagens da situação estavam em jogo: de um lado, Jack, com seu instinto civilizador de liderança; do outro, Sayid e Kate ainda com esperanças de resgate, e principalmente Sawyer, dono de uma das falas mais emblemáticas desse início de série. “You’re just not looking at the big picture, Doc. You’re still back in civilization. (…) But me? I’m in the wild“.

Entretanto, esse tom realista vai se entremeando em diversos momentos com indícios de um mundo fantástico (Locke curado, Monstro, fantasma do pai de Jack, etc.), ao mesmo tempo em que começa a ser ventilada a hipótese de que haja outros habitantes na ilha. Essa constatação surge com força no episódio número nove, Solitary, no qual Sayid encontra Danielle Rousseau, a francesa que estava presa na ilha há 16 anos, e é confirmada ao final do episódio 10, Raised By Another, no qual a chegada de Sayid de volta ao acampamento para informar aos companheiros que ouviu vozes na selva coincide com a descoberta de Hurley. Ele fizera um censo para conhecer melhor os sobreviventes do desastre, e descobriu que Ethan Rom não estava na lista de passageiros do avião. E é também nesse final de episódio que Ethan, percebendo-se encurralado, seqüestra Charlie e Claire.

É nesse momento que a temporada tem uma mudança de ritmo, e o foco narrativo se desloca – e se multiplica. Agora, os personagens, além de conseguir sobreviver, precisam lidar com a possível presença de outros habitantes na ilha e tentar resgatar os seqüestrados. E uma descoberta de Locke e Boone – a famigerada escotilha no chão – dá corpo a um elemento fundamental em Lost: o fato de que o ambiente em que se passa é um dos principais personagens da trama. Ainda que seja também nesse trecho da temporada que Michael dê início ao projeto da balsa, cada vez mais o interesse está nos mistérios da ilha: a possível presença dos Outros, ocasionais aparições do monstro e a tentativa de se abrir a escotilha (que mais tarde também vai incluir o estranho avião bimotor que carregava traficantes de heroína nigerianos).

Com essa mudança de foco narrativo, o tom surreal também fica cada vez mais demarcado. Sonhos, alucinações, coincidências – um tom fantástico pronunciado que não se limita à ilha, mas por vezes também se estende aos flashbacks (particularmente no episódio Numbers, centrado em Hurley, cujo azar após ganhar a loteria é retratado de maneira absolutamente exagerada, e no episódio Special, em que ficam evidentes as capacidades sobrenaturais de Walt). Dessa maneira, a influência da ilha sobre os personagens se torna mais do que apenas no nível da sobrevivência. Começa a ser sugerida uma espécie de presença que aparentemente já se anunciava antes mesmo do desastre de avião.

No apartamento que Jin visita, há uma garota vendo Hurley na TV.

Entretanto, é interessante como esse elemento se apresenta. Cada vez mais, é o espectador que tem de fazer as ligações, que permanecem invisíveis aos personagens. É no final dessa temporada que nossa perspectiva se desprende da dos personagens, e o jogo narrativo fica evidente. A própria maneira pela qual a história é contada se impõe como elemento organizador: apenas nós vemos que Sawyer estava na mesma delegacia que Boone na Austrália, apenas nós vemos que a filha de um dos clientes que Jin tem de visitar estava vendo Hurley ganhar na loteria, etc.

Da mesma maneira, o season finale é exemplar nesse tipo de organização: os flashbacks, nesse momento, funcionam escancaradamente como dispositivo da narração, no sentido de que não são nem uma lembrança significativa vindo à tona, nem os personagens lembrando de algo por associação com o que ocorre na ilha. Trata-se pura e simplesmente de um elemento catalisador de emoções para quem assiste, e não para os personagens. Por ser o último episódio da temporada, os flashbacks estão aí para que analisemos a evolução desses personagens – como eles foram se tornando mais complexos do que uma visão superficial poderia sugerir. Não é que as experiências na ilha os tenha transformado em algo que não eram; é mais o caso de ela ter exigido que esses personagens mostrassem uma faceta que escondiam. Porque outro tema latente da série é o mantra “torna-te quem tu és“, ainda que não fique claro se cada um se tornou (ou está se tornando) a pessoa que estava destinado a ser ou a que escolheu ser. Além disso, claro, os cruzamentos entre personagens ocorridos no aeroporto e no avião de Sidney nos ajudam a entender o tipo de relação que desenvolveram (dentro do mesmo núcleo “familiar”, por assim dizer – como Shannon e Boone, Jin e Sun, e principalmente Walt e Michael; e uns com os outros – Shannon e Sayid, Locke e Jack, etc.).

Charlie precisa se arrastar por um buraco para vencer o vício e acreditar em si mesmo.

A maneira como se constrói esse episódio (Exodus) difere um pouco do que seria feito com os episódios finais nas temporadas seguintes. Como aqui o ritmo é naturalmente mais lento, as ameaças ainda não estão claras, o season finale parte de três linhas narrativas, duas que já haviam sido lançadas desde a metade da temporada e a outra que é criada no próprio episódio. Nas temporadas dois e três, por exemplo, tudo que será explorado no season finale começa a ser explorado três ou quatro episódios antes, a partir de subtramas que resolverão as questões maiores da temporada. Aqui, o episódio é a resolução natural dos três grandes eixos da temporada – escapar da ilha, abrir a escotilha e lidar com os Outros. Os dois primeiros itens não se dividiram em sub-tramas: a balsa para escapar da ilha está sendo construída há cerca de dez episódios, e as tentativas de abrir a escotilha não evoluiram tanto desde que ela foi encontrada.

O que dispara a resolução de tudo é a chegada de Rousseau dizendo que os Outros estão vindo para pegar Aaron, filho de Claire. O professor Arzt informa que está chegando a época de monções, e se a balsa não partir logo a maré não permitirá que eles naveguem. E, para o restante se proteger dos Outros, será preciso abrir a escotilha e esconder todos dentro. Numa só ação, juntam-se todas as linhas narrativas da temporada. E a maneira como elas são resolvidas estabelece perfeitamente o tom que será adotado na temporada seguinte.

A balsa é destruída pelos Outros, que raptam Walt e deixam Michael, Sawyer e Jin em situação complicada. A pretensão aqui é clara: deixem de lado, por ora, as esperanças de escapar da Ilha. Os Outros não vão deixar, e é preciso lidar com eles antes que se possa pensar em resgate. E, claro, uma das principais preocupações da segunda temporada será ir atrás de Walt e descobrir mais sobre os Outros. Entretanto, os acontecimentos do episódio mostram que essa não é a preocupação imediata: eles só queriam pegar Walt, e não Aaron. A “fumaça negra” que Rousseau mencionara indicando a chegada dos Outros fora acesa por ela mesma, num ato de loucura. Portanto, os Outros ainda irão se manter afastados por algum tempo.

O que se impõe no momento é a abertura da escotilha, o principal acontecimento do season finale e que vai definir completamente a narrativa da segunda temporada. Depois de acontecimentos surreais (um navio no meio da floresta cheio de dinamite, um encontro com o Monstro – cuja “forma” já começa a ser sugerida), Jack e Locke explodem a porta da escotilha. Nesse momento, a oposição entre o dois já foi explicitada: Jack é um homem da ciência, e Locke é um homem de fé. Essa dialética vai ser cada vez mais explorada daqui pra frente.

Tudo isso fica conjugado no sensacional plano que fecha a temporada: homem de ciência e homem de fé, olhando pelo buraco escuro, dando as costas para as tentativas de escapar e se aprofundando no mistérios da ilha, vendo algo que não vemos (nos é negada a visão do que há no buraco, e só saberemos na temporada seguinte), porque apenas na união dos dois é que é possível encontrar a resposta. Olhamos nos olhos do homem de ciência e do homem de fé, ambos perfeitamente enquadrados e unidos no mesmo plano, nos olhando de volta, nós e eles tentando entender o que estamos vendo: talvez a imagem mais representativa de Lost.

Episódios:

– 1×01: Pilot – Part 1 [Jeffrey Lieber and J. J. Abrams & Damon Lindelof / Dir.: J. J. Abrams] *****

– 1×02: Pilot – Part 2 [Jeffrey Lieber and J. J. Abrams & Damon Lindelof / Dir.: J. J. Abrams] *****

1×03: Tabula Rasa [Damon Lindelof / Dir.: Jack Bender] ***1/2

1×04: Walkabout [David Fury / Dir.: Jack Bender] *****

1×05: White Rabbit [Christian Taylor / Dir.: Kevin Hooks] ****

1×06: House Of The Rising Sun [Javier-Grillo Marxuach / Dir.: Michael Zinberg] ***1/2

1×07: The Moth [Paul Dini and Jennifer Johnson / Dir.: Jack Bender] ****

1×08: Confidence Man [Damon Lindelof / Dir.: Tucker Gates] ****1/2

1×09: Solitary [David Fury / Dir.: Greg Yaitanes] ***1/2

1×10: Raised By Another [Lynne E. Litt / Dir.: Marita Grabiak] ***1/2

1×11: All The Best Cowboys Have Daddy Issues [Javier-Grillo Marxuach / Dir.: Stephen Williams] ****

– 1×12: Whatever The Case May Be [Damon Lindelof and Jennifer Johnson / Dir.: Jack Bender] **1/2

1×13: Hearts and Minds [Carlton Cuse and Javier-Grillo Marxuach / Dir.: Rod Holcomb] ***

– 1×14: Special [David Fury / Dir.: Greg Yaitanes] ****

1×15: Homecoming [Damon Lindelof / Dir.: Kevin Hooks] ***1/2

1×16: Outlaws [Drew Goddard / Dir.: Jack Bender] *****

– 1×17: …In Translation [Leonard Dick and Javier-Grillo Marxuach / Dir.: Tucker Gates] ****1/2

1×18: Numbers [Brent Fletcher and David Fury / Dir.: Daniel Attias] ****1/2

1×19: Deus Ex Machina [Carlton Cuse and Damon Lindelof / Dir.: Robert Mandel] ****1/2

1×20: Do No Harm [Janet Tamaro / Dir.: Stephen Williams] ****

1×21: The Greater Good [Leonard Dick / Dir.: David Grossman] ***1/2

1×22: Born To Run [Adam Horowitz and Edward Kitsis / Dir.: Tucker Gates] ***

1×23: Exodus – Part 1 [Carlton Cuse and Damon Lindelof / Dir.: Jack Bender] *****

1×24: Exodus – Part 2 [Carlton Cuse and Damon Lindelof / Dir.: Jack Bender] *****

LOST (Primeira Temporada) **** [8,125]

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Dia 4 (segunda-feira, 28 de setembro).

– 24 City, de Jia Zhang-ke. Estação Vivo Gávea, 15h10. Eu já tinha perdido a oportunidade de ver esse filme no Festival do ano passado (porque ou eu tô maluco ou esse filme constava na programação de 2008). E, como não dá muita pinta de que vá entrar em cartaz, preferi esse a Brilho de uma Paixão, de Jane Campion, que de qualquer forma estréia em circuito comercial daqui a pouco.

Pra quem tinha como única referência do cineasta a obra-prima Still Life, um dos melhores filmes de 2007, esse 24 City foi um tanto quanto decepcionante. Novamente – eu não estou delirando nem forçando a barra, essa parece ser a tônica de muitos filmes desse Festival -, o que está em questão aqui é a exploração e a intervenção no espaço; a maneira como ele se modifica e como as pessoas se relacionam com essa metamorfose. Questão que também era central em Still Life. Mas enquanto lá a construção era feita a partir do espaço, numa intervenção quase onírica que atingiu seu ápice no prédio lançado como foguete, aqui o filme se constrói para o espaço, num método de contemplação de como os corpos humanos contrastam com os maquinários gigantescos.

Outra diferença fundamental é que Still Life era uma ficção elaborada a partir de espaços “reais”, por assim dizer; tomava-se a cidade como ponto de partida para fabulações que diziam muito sobre a China. 24 City, por outro lado, é um documentário que limita-se a registrar (de maneira bela e eficaz, diga-se de passagem) determinado espaço – no caso, uma fábrica que vai virar um complexo residencial -, e povoá-lo com as histórias dos ex-funcionários que compõem um imaginário acerca do modo de vida do trabalhador chinês.

Esse projeto um tanto quanto convencional e já exaurido dá a impressão de ser um passo atrás na trajetória de Jia Zhang-ke, que havia feito, com tema similar, um filme bem mais forte em termos estéticos e até humanos. Ainda que o talento do diretor consiga tirar momentos inspirados dessa fórmula batida – como a inserção de telas pretas com frases e poemas famosos, além de diversas músicas populares chinesas -, o filme fica lento e repetitivo em muitos momentos. Jia não tem a habilidade em entrevistas de um Coutinho, e os depoimentos são bastante simples e desprovidos de maior interesse em si. Isso até serve bem, de certa maneira, à construção do tal imaginário, mas não é porque os depoimentos são mais importantes como dispositivo que como histórias a serem contadas que eles devem ser desprovidos de interesse próprio (vide o próprio Coutinho, que num filme de puro dispositivo como Jogo de Cena seleciona depoimentos que são absolutamente fascinantes em si mesmos).

O momento mais forte de 24 City é também um dos mais deslocados, e não consigo ver como ele se encaixa no resto do filme. Uma mulher por volta dos seus 40 anos diz que, no tempo em que trabalhava na fábrica, era chamada de “Pequena Flor” por seus colegas, devido à sua semelhança com a atriz principal do filme de mesmo nome. As variações em torno dessa história são interessantes; e foi apenas ao final, quando mostrada uma cena do filme Pequena Flor, que me dei conta de que a mulher era de fato a tal atriz, e que ela estava apenas interpretando o papel de uma funcionária.

Tudo bem, esse tipo de jogo perde muito da força pra quem está acostumado aos recentes documentários brasileiros, principalmente pra quem já viu Jogo de Cena umas sete vezes. Mesmo assim, não deixou de ser um momento de maior inspiração (em termos de técnica de documentário) que o resto do filme. Se é possível inferir que a inserção do depoimento dessa atriz contribui para a construção de um imaginário de época, ainda assim colocar em questão a ficcionalização da história da China parece fora de contexto, se pensarmos que isso não parecia interessar em Still Life e certamente é uma questão menor em 24 City – afinal, o que parecia importante eram as histórias que surgiam em meio ao modo de vida repetitivo da classe trabalhadora chinesa, e a maneira como as pessoas estão lidando com essas histórias agora que o espaço em que elas ocorreram está sendo modificado tão profundamente.

– 35 Doses de Rum, de Claire Denis. Estação Botafogo, 22h. Sou relativamente novo no cinema de Claire Denis, tendo assistido a apenas dois de seus filmes, ambos recentemente. O primeiro deles – talvez não a melhor introdução no estilo da cineasta – foi Trouble Every Day. Belo e absolutamente nojento e incômodo, esse filme me chocou de maneira quase repulsiva, pois cheguei a ele sem muitas informações prévias, apenas com uma leve intuição de qual seria o estilo de Denis.

Intuição que se mostrou correta quando assisti ao filme de estréia da diretora, Chocolat. Apesar de todo o estilo visual de Claire Denis ser facilmente perceptível em Trouble Every Day – que até potencializa de maneira bastante radical uma das principais características da cineasta, que é a de fazer um cinema da materialidade do corpo humano -, Chocolat sintetiza de maneira bem mais clara certos detalhes que eu esperava encontrar nos filmes de Denis: narrativa elíptica, dramaturgia bastante pontual e bem mais intuída do que efetivamente mostrada, captação de pequenos gestos e detalhes quase imperceptíveis, etc.

Cinema de pequenos gestos,...

Cinema dos pequenos gestos,...

Finalmente, em 35 Doses de Rum, vejo a melhor síntese desses elementos, em um filme simples que no entanto tem momentos de grande força. Em Chocolat, as características-chave do cinema de Denis, ainda que se fizessem presentes, encontravam-se diluídas entre outras preocupações, como o tom político evidente e bem mais direto, além de um flerte com questões de multiplicidade de pontos de vista e a mecânica da memória.

... superfície dos corpos,...

... da superfície dos corpos,...

O fiapo de narrativa de que parte 35 Doses de Rum (inspirado num filme de Ozu, Pais e Filhos) acaba funcionando melhor dentro da proposta de um filme de contemplação, da captura de gestos e da sensualidade dos corpos. A trama, ainda que não seja de todo desimportante, é bastante lacunar, e se desenvolve não por acontecimentos ou situações, mas por pequenos momentos que ilustram, e vez por outra significam ou alteram, as relações entre os personagens. Relações bastante difusas e pouco definidas, com exceção do grande afeto existente entre pai e filha.

O filme acompanha as trajetórias individuais desses personagens, se detendo

... de troca de olhares:...

... da troca de olhares:...

nos momentos em que essas trajetórias se encontram (mas não se limitando a eles). Não à toa, a melhor seqüência do filme é aquela que encapsula as tensões dramáticas (se é que podemos chamar assim) dos quatro personagens principais: o pai, a vizinha que parece ter atração por ele, a filha e o vizinho de cima que tem uma relação indefinida com ela. Todos eles vão juntos para um show; mas o carro enguiça no meio da rua e, em meio à chuva, eles resolvem se abrigar em um bar. Aqui há uma incrível cena de dança, em que o bailar dos corpos, as trocas de olhares, os pequenos toques, tudo é orquestrado de maneira precisa e sensível por Denis, numa seqüência que parece sintetizar o principal do seu cinema.

Se o filme tem falhas (uma certa barriga na viagem do pai e da filha à Alemanha; uma tentativa desnecessária de incluir tintas políticas através das discussões na faculdade da filha), elas se tornam mínimas diante de momentos de tanta potência visual, principalmente diante da perfeita captura dos corpos na mencionada cena da dança, em que fica evidente todo o prazer que pode proporcionar o cinema de Claire Denis.

 

os grandes prazeres do cinema de Claire Denis.

... os grandes prazeres dos filmes de Claire Denis.

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