Ainda sou novato na coisa, mal aprendi a andar e falar: é apenas meu terceiro ano de Festival.
Lembro-me claramente da manhã de uma segunda-feira, em setembro de 2007, quando vi o suplemento d’O Globo sobre o Festival.
Foi só no final do colégio que comecei a perceber que meu interesse pelo cinema ia além do “pô, a gente podia ver um filme na sexta, hein…”. O Ensino Médio foi um gradual e (muito) lento processo de descoberta do cinema. Alguns filmes vistos a esmo me marcaram por diversos motivos nesse período (me vêm à mente alguns nomes óbvios, como Pulp Fiction, Annie Hall e The Godfather; e outros talvez um pouco – só um pouco – menos convencionais, como Era Uma Vez na América, A Vila (!), O Iluminado, Os Excêntricos Tenenbaums e Antes do Amanhecer/Antes do Pôr-do-Sol. Qualquer dia elaboro mais sobre cada um deles).
Por ora, isso serve apenas para ilustrar o motivo do meu deslumbramento e espanto com a notícia de que iriam passar tantos filmes novos na cidade. Desde aquele primeiro dia, eu já elaborava minhas detalhadas e prolixas listas de horários.
Minha melhor lembrança do Festival ainda é a do meu primeiro dia: sem ter almoçado, havia visto dois filmes (O Sol, do Sukurov e Sonhando Acordado, do Gondry); eu estava morrendo de dor de cabeça, de fome e de sono, mal me agüentando em pé, quando entrei na sessão de À Prova de Morte, do Tarantino. [Vale ressaltar também que era meu primeiro Tarantino no cinema: mesmo se eu já gostasse do cara em 2004, quando Kill Bill – Vol. 1 foi lançado nos cinemas brasileiros (eu só veria Pulp Fiction e Cães de Aluguel em 2005), eu não tinha idade suficiente para entrar na sala[1]]. Depois de alguns minutos de projeção, eu já esquecera a dor de cabeça, a fome e o sono. Foi provavelmente a melhor e mais eufórica sessão de cinema a que já fui: a platéia vibrava com os diálogos geniais e com as empolgantes cenas de ação; na sensacional perseguição final, o público veio abaixo, e ao surgimento do The End na tela seguiu-se uma das mais longas e calorosas salva de palmas que eu já presenciei em um cinema.
Ainda assim, sou bem menos obcecado do que minhas listas cheias de asteriscos, cores e observações poderiam sugerir. Não me preocupo de só ver filmes que com certeza não vão estrear em circuito (e essa atitude me rendeu bons frutos – vide o À Prova de Morte, filme que eu tinha certeza que passaria no cinema poucos meses depois do Festival e que até hoje tem seu lançamento adiado), e em cada um dos meus dois anos de Festival vi menos de vinte filmes. Não creio que esse ano vá ser muito diferente, ainda que minha lista inicial incluísse mais de trinta títulos.
Não que isso me incomode. De fato, acho cansativo e de certa forma contra-producente ver um número tão grande de filmes. No geral, se vejo mais de três no mesmo dia – ou até mais de dois, dependendo do ritmo dos dias anteriores – eu já fico com dor de cabeça. Resta pouco tempo pra digerir os filmes e deixar que eles façam efeito sobre mim. E invariavelmente acabo assistindo a algumas bombas, que me fazem desejar ter ido pra casa descansar; ou mesmo ver novamente um filme que tenha me impressionado muito.
Hoje, na saída de Abraços Partidos, do Almodóvar, conversei brevemente com uma mulher que reclamava que o Festival ficou “organizado demais”. Ela dizia que o clima de ficar horas e horas na fila pra comprar ingresso era incomparável, e que parte dessa magia estava sumindo. Concordo, em parte.
No meu primeiro Festival, senti que havia algo de extraordinário naquele amontoado de pessoas no saguão do Espaço Unibanco; comentando empolgadas sobre os filmes que iriam ver, agarrando-se ao caderno de horários d’O Globo como se fosse uma bíblia, inclinadas sobre pedaços de papel para anotar os ingressos que iriam comprar, num frenesi absurdo para ver o novo Tarantino ou o novo Lynch. Lembro-me bem da sensação engraçada que foi me sentar timidamente num dos bancos pra organizar minhas anotações. Eu, marinheiro de primeira viagem, mochila nas costas e ingenuamente acreditando que chegaria a tempo pra aula da faculdade dali a meia hora, sem saber que seria uma longa tarde com aquele papelzinho de senha na mão, fazendo cálculos mirabolantes pra conciliar horários de filmes no Odeon e em Ipanema, enquanto esperava a minha vez de ser atendido.
E, nas duas semanas que se seguiram, as inúmeras aulas matadas em favor de um bem maior, os vai-e-vens constantes pela Zona Sul carioca, os inúmeros atrasos que me fizeram perder filmes, a choppada da faculdade que me fez não ir ver Jogo de Cena no dia seguinte, sendo que o ingresso já estava comprado; os muitos encontros com amigos em diversos cinemas, os horários que coincidiam e as opiniões depois de cada sessão (a concordância em dizer que A Maldição da Flor Dourada e Velha Juventude foram experiência traumáticas, e as discussões sobre qual filme do Grindhouse era melhor – “óbvio que o Death Proof é muito mais filme que Planeta Terror”).
Algo de tradição já se estabeleceu nesses dois anos; e não me parece que ela tenha se esvaído totalmente agora. Claro que minhas anotações em folhas de caderno (apesar de ainda existirem) convivem agora com complexas tabelas no computador; e não há mais (tão) longas filas de espera no saguão do Espaço Unibanco, que agora se chama Espaço de Cinema; não tenho a ilusão de que as aulas da faculdade sairão incólumes e esse ano o caderno d’O Globo saiu bem mais tarde que o normal.
Mas o todo o resto ainda permanece; e, de alguma forma, acho que a ausência daquele fanatismo extremado que eu tive nos dois primeiros anos é de certa forma uma evolução. É que eu fico achando que esse pular de filme em filme, numa correria obsessiva para atender a uma lista gigantesca de possibilidades, acaba se tornando mais importante que os filmes em si. Tira o foco do que é mais importante na coisa, que é o cinema. Certamente não quero que uma maratona de quatro filmes por dia me deixe tão cansado a ponto de eu não conseguir aproveitar a contento a exibição de um I’m Not There, por exemplo (dormi durante uns vinte minutos numa sessão de segunda-feira à noite no Festival de 2007).
Esse ano, portanto, vou tentar encontrar esse equilíbrio entre quantidade e qualidade. Ver um número razoável de filmes sem que isso me deixe completamente acabado; selecionar minha lista com algum critério sem, no entanto, deixar que isso elimine a magia da euforia conjunta pelo amor ao cinema.
Dia 1 (sexta-feira, 25 de setembro).
– Chuva, de Paula Hernández. Estação Vivo Gávea, 13h40. Minha amiga chegou muito atrasada no filme, perdendo a grande seqüência inicial que mostrava aquilo que eu acreditava que se estenderia por todo o filme: a entrada de um estranho no carro de uma mulher durante um engarrafamento chuvoso em Buenos Aires. Li na Cinética que essa idéia é meio chupada de um filme da Claire Denis. Não sei dizer; o que eu sei é que o desenrolar dessa situação inicial, a parte do filme que minha amiga não assistiu, me lembrou bastante Encontros e Desencontros, guardadas as devidas proporções. Ainda que a relação dos dois soe bastante calculada, com evolução bem cronometrada, passando pela estranheza inicial, a aproximação, a briga, a reconciliação que leva ao sexo e a despedida, a expressividade dos atores compensa bastante esse esquematismo (mas, novamente, não há aqui um Bill Murray que possa fazer a relação soerguer-se acima desse cálculo).
A narrativa é razoavelmente lacunar, e ainda assim essas elipses são previsíveis o suficiente para que estruturalmente o filme já não funcionasse, mesmo antes do desnecessário flashback explicativo e preenchedor (ainda que essa cena em si tivesse lá sua força) – ao ponto de a minha amiga, que chegou quase meia hora atrasada no filme, não ter sentido falta de nada. E me parece algo redutor pra um filme que a falta de sua meia hora inicial não seja sentida.
Ainda assim, o filme me ganhou por construir bem seus espaços – o carro da protagonista é muito bem explorado, assim como toda a dinâmica de veículos enfileirados no engarrafamento chuvoso. E também pela dupla de protagonistas, que conseguem compor seus personagens bem o suficiente para que eles não sejam (muito) prejudicados por uma narrativa excessivamente esquemática.
– As Praias de Agnès, de Agnès Varda. Espaço de Cinema, 19h. Decisão muito acertada feita na última hora, no meio do caos que era o saguão do cinema quando se formava a longuíssima fila pra sessão anterior, primeira exibição aberta ao público de Aconteceu em Woodstock. Esse filme não estava na minha programação inicial, tampouco constava da minha lista de prioridades; entretanto, a preguiça e pão-durice pra não gastar dinheiro de passagem prevaleceram – como eu e minha namorada já estávamos no Espaço comprando ingressos para os outros dias, decidimos ficar por ali mesmo e ver o filme da Agnès. Escolha felicíssima.
A presença de Varda na sessão me parece algo de impressionante (e também é digno de nota que o Festival tenha a ocorrência de dois filmes internacionais sendo apresentados por seus cineastas, no caso dois nomes tão importantes e aparentemente díspares quanto Varda e Tarantino). Com seus oitenta anos e seus cabelos meio brancos, meio roxos, o discurso de Agnès Varda antes da projeção mesclou uma sabedoria de alguém com muitos anos de carreira e a empolgação de um cineasta que apresenta seu primeiro filme – além, é claro, de uma irresistível doçura.
O filme em si, um documentário em que Varda reflete sobre sua vida através de um painel de lembranças, fotos e fragmentos de filmes, é de uma pungência espantosa. Em geral, eu já me simpatizo de cara com projetos de documentário que desde o início se proponham a desconstruir sua “veracidade” (mesmo que isso caia na batida discussão de ficção X realidade), e que apresentem a memória, a biografia, como um painel fragmentado. Agnès mesmo diz, em determinado momento do filme, algo como: “as lembranças são como um quebra-cabeças incompleto; podemos tentar construí-lo, mas sempre restam espaços vazios”.
O filme alia procedimentos visuais simples, mas profundamente efetivos (como a seqüência inicial, em que Varda dispõe diversos espelhos em uma praia, criando imagens belíssimas), com efeitos mais rebuscados – fusões, sobreposições, mudanças no tamanho da janela de exibição, tela dividida entre fotos e imagens em movimento, etc.
Gostei especialmente da maneira como a equipe que ajudou Agnès na montagem do cenário na praia foi apresentada: todos falavam seus nomes para a câmera através dos espelhos, sublinhando o aspecto principal do filme, que é a reconstrução da vida de Varda a partir da maneira como ela organiza o que os outros têm a dizer sobre ela. Apesar de os diversos recursos visuais acima mencionados também serem efetivos para criar esse painel, há alguns momentos em que eles se tornam cansativos. Nada que prejudique o filme; apenas uma confirmação de que, pelo menos pra mim, a cineasta tenha mais força lidando com a mise-en-scène propriamente dita que com os maneirismos visuais. Dois dos meus momentos favoritos do filme são filmados com uma economia incrível, e têm muita força apenas pela maneira como a cineasta organiza a exposição. Refiro-me ao momento em que Varda mostra sua pequena casa feita com rolos de película e à cena final do filme (a “seqüência-supresa-pós-créditos”), em que várias pessoas lhe dão vassouras de presente, para representar a expressão francesa que indica os oitenta anos de Varda, que também pode significar “oitenta vassouras”.
Um grande filme sobre a memória (pessoal e cinematográfica), e o fato de eu ter gostado tanto dele apenas sublinha o quão absurdo é eu ainda não ter visto Santiago, além de explicar porque esse post começou do jeito que começou. Desde já, um dos favoritos do Festival.
[1] Ainda que eu pudesse mandar o velho macete do Cinemark, de comprar ingresso pra um filme e ver outro, como fiz tantas vezes.
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