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“Fiz isso durante algum tempo, ouvir, prestar atenção, interpretar e contar, fiz como trabalho remunerado durante esse tempo, mas vinha fazendo desde sempre e continuo, passiva e involuntariamente, sem esforço e sem recompensa, já é certo que não posso evitá-lo ou que é minha maneira de estar no mundo, vai me acompanhar até a morte, descansarei disso então. Mais de uma vez me disseram que era um dom que eu tinha, como me mostrou Peter Wheeler, que foi quem me alertou ao me explicar e descrever tal dom, as coisas só passam a existir quando você as nomeia, isso todo mundo sabe ou intui. Esse dom, ao contrário, eu vejo às vezes como uma maldição, e olhe que agora costumo cingir-me às três primeiras atividades, que são caladas, interiores, da consciência, e não têm por que afetar ninguém além de quem as exerce, e só conto quando não tem mais remédio ou me pedem insistentemente. Porque, na minha época profissional de Londres, ou digamos recompensada, aprendi que o que tão-só acontece mal nos afeta ou não mais do que o que não acontece, mas seu relato sim (também o do que não acontece), que é indefectivelmente impreciso, traiçoeiro, aproximado e no fundo nulo, e no entanto quase a única coisa que conta, a decisiva, a que transtorna nosso ânimo, nos desvia e envenena nossos passos, e seguramente faz girar a preguiçosa e frágil roda do mundo.

Não é gratuito, não é um capricho que na espionagem, ou nas conspirações, ou no delito, o saber dos que participam de uma missão, de uma maquinação ou de um golpe – do clandestino, do sub-reptício –, seja difuso, parcial, fragmentário, oblíquo, que cada um esteja a par apenas de sua tarefa mas não do conjunto nem do objetivo final. Vimos isso nos filmes, como o guerrilheiro da Resistência que prevê não sair vivo da próxima emboscada, ou do atentado que prepara, e diz à namorada na despedida: “É melhor que você não saiba de nada, assim, quando te interrogarem, dirá a verdade ao dizer que não sabe, a verdade é fácil, tem mais força, é mais crível, a verdade persuade”. (E é verdade que a mentira exige capacidade de fabulação e de improvisação, e inventiva, memória férrea, arquiteturas complexas, todos a praticam mas são poucos os capacitados). Ou como o cérebro que planejou o grande assalto, o que concebe e dirige, instrui seu comparsa ou um esbirro: “Se você só conhecer sua parte, mesmo que te peguem ou você falhe, a coisa terá seguimento”. (E é verdade que sempre se pode admitir que um elo se solte ou se produza alguma falha, não se chega ao fracasso definitivo tão rápido nem é tão simples, toda a empresa ou ação resiste e se debate antes de vir abaixo). Ou como o chefe do Serviço Secreto sussurra ao agente de quem suspeita e em quem não confia mais:  “Sua ignorância é o que mais te protegerá, não pergunte mais, não pergunte, será sua salvação e seu salvo-conduto”. (E a melhor maneira de evitar traições é que nada se preste a elas, ou que consistam em blefe, seu conteúdo sem valor nem peso, casca, frustração para quem paga por elas). Ou como o que encomenda um crime, ou o que ameaça com um, ou o que deixa a nu seus podres expondo-se a uma chantagem, ou o que compra às escondidas – a gola do capote erguia e a cara sempre à sombra, nunca acenda o cigarro – avisa ao assassino de aluguel, ou ao ameaçado, ou ao possível chantagista, ou à comutável mulher já esquecida no desejo e que mesmo assim nos envergonha: “Já sabe, a partir de agora você nunca me viu, não sabe quem sou, não me conhece, não falei com você nem te disse nada, pra você não tenho rosto nem voz nem bafo nem nome, nem mesmo nuca ou costas. Não houve nem esta conversa nem este encontro, o que sucede aqui diante dos seus olhos não ocorreu, não está acontecendo, você não ouviu estas palavras porque eu não as pronunciei. E embora você as ouça agora, não as digo”.

(Calar-se, e apagar, suprimir, cancelar, e já ter calado antes: é a grande aspiração impossível do mundo, por isso ficam tão poucos os sucedâneos, e é pueril retirar o dito e fazer uma retratação tão vazia; por isso é tão irritante – porque a única coisa que pode incutir a dúvida e ser às vezes eficaz, de modo inverossímil – a negação extremada, negar ter dito o formulado e ouvido e negar ter feito o cometido e sofrido, é desesperador que se possa cumprir sem fissuras e com todo rigor o que essas palavras de antes anunciam, possíveis na boca de tantos e tão diferentes, do indutor e do ameaçador, de quem pressente a chantagem e do que paga seus prazeres ou sucessos furtivamente, e também na boca de um amor ou de um amigo, e então nos atinge com elas o desespero de sermos negados).

Todas essas frases que vimos pronunciadas no cinema eu disse, ou me dispararam, ou ouvi de outros ao longo da minha existência, isto é, na vida, que guarda muito mais relação com os filmes e a literatura do que normalmente se reconhece ou se acredita. Não é que um imite o outro ou o outro o um, como se afirma, mas que nossas infinitas fantasias também pertencem à vida e contribuem para ampliá-la e complicá-la, e para torná-la mais turva e ao mesmo tempo mais aceitável, embora não mais explicável (ou sim, muito de vez em quando). É muito tênue a linha que separa os fatos das fantasias, e também os desejos da sua consumação, e o fictício do acontecido, porque na realidade as fantasias já são fatos, e os desejos sua consumação, e o fictício acontece, embora nada disso seja desse modo para o senso comum ou para as leis, que por exemplo estabelecem uma abissal diferença entre a intenção e o delito, ou entre seu cometimento e sua tentativa. Mas a consciência não tem presente as leis, nem o senso comum lhe interessa ou atine, somente a cada consciência seu sentido próprio, e essa linha tão tênue que muitas vezes se esfuma, de acordo com a minha experiência, e não separa mais nada quando desaparece, de modo que aprendi a temer o que passa pelo pensamento e inclusive o que o pensamento ainda ignora, porque vi quase sempre que tudo já estava ali, em algum lugar, antes de chegar a ele ou atravessá-lo. Aprendi a temer, portanto, não apenas o que se concebe, a idéia, mas o que antecede ou é anterior a ela. E assim eu sou minha própria dor e minha febre”.

Seu rosto amanhã – [vol 1.] Febre e lança, de Javier Marías.

Eu não lembro exatamente como começou. Bebíamos umas cervejas nalgum bar da Voluntários da Pátria. Ouvi alguém mencionar uma musica árabe que tocava em algum comercial de TV. Falaram que devia ser do Khaled. Outro lembrou do Shaggy. “Pô, não era nessa época que tocava também aquela musica da Dido?”. Down the rabbit hole, a bordo de um DeLorean, ouvindo as 7 mais da Jovem Pan e o Rock10 da Radio Cidade. O mix caleidoscópico da música pop do final dos anos 90 / início dos anos 2000 começou a jorrar – Sugar Ray, Blink 182, TLC, Oasis, Alanis Morissette, Red Hot Chili Peppers, Green Day, Silverchair, The Offspring, Britney Spears, Backstreet Boys, ‘N Sync, Hanson, All The Small Things, Raimundos, I Don’t Wanna Miss A Thing, Mr. Jones, Molejo, For You, Santeria, Laços de Família Internacional (Shania Twain, Morcheeba, Toni Braxton), Iris, Rockafeller Skank, You Get What You Give, Claudinho e Bochecha, Never There, Save Tonight, All Star, Foo Fighters, Santana, Gorillaz, Linkin Park, The Strokes, How You Remind Me, Natalie Imbruglia, Wherever You Will Go, Coldplay, Avril Lavigne, A Thousand Miles, You Know You’re Right – todas essas músicas ali, fazendo sucesso na passagem da infância pra adolescência dessa galera que nasceu no final dos anos 80. E, por isso mesmo, são referências que misturam um sentimento de inocência infantil com o de descoberta adolescente.

Em retrospecto (sempre, sempre em retrospecto), não é de todo inapropriado que eu e meus amigos tenhamos feito essa reconstituição de memórias, do sentimento de uma época, de um momento específico do tempo e da vida, depois de ver Se Beber, Não Case 2. O filme não é particularmente bom – inclusive é bem mais fraco que o primeiro –, mas tem incrustado em si essa vontade de se remeter a algo anterior, reconstruir uma experiência fugidia que se constitui, nessa narrativa, como um ápice, como um momento glorioso e inigualável. O filme tenta, o tempo todo, em suas piadas e em sua estrutura, remeter-se ao primeiro Se Beber, Não Case, ele mesmo uma história construída em torno de um vácuo inalcançável (a noite esquecida pela bebedeira), um vácuo que os personagens tentam reconstituir o tempo todo.

De onde surgiu a vontade, a necessidade de escrever esse post? Por que precisamos o tempo todo desse sentimento revisionista? Cá estou eu, prestes a me submeter a uma sessão de reconstrução da vida através das sessões de cinema, e por quê?

Por que agora? Não sei, sinceramente. Talvez tenha bastado ler esse post. Talvez tenha bastado pensar que duas sessões de cinema potencialmente fodas se aproximam (mais sobre isso adiante).

Por que dessa forma? Porque falar de cinema é necessariamente, essencialmente, falar de memória. E falar de memória é falar da vida. Talvez fosse mais corajoso e acurado fazer essa reconstituição através de músicas, que são mais onipresentes que os filmes (ainda mais considerando que a lista é composta apenas por filmes vistos no cinema). Mas uma lista de músicas também seria necessariamente mais numerosa. (e é claro que ser uma lista numerosa e longa não é problema pra mim, o cara mais prolixo da cidade. A questão é que seria uma lista muito mais dolorosa, vergonhosa e desesperada de se fazer).

Entretanto, ir ao cinema também nunca foi uma atividade tão recorrente pra mim, menino criado a leite com pêra cujo grande aprendizado cinematográfico foi via VHS e DVD. E ainda assim. As sessões de cinema, mais raras e talvez por isso mais poderosas e cujas lembranças são de alguma forma mais profundas, surgem como que pontos de luz no escuro (rá!) a iluminar o entorno, enquanto que as numerosas listas de músicas só se confundiriam e tornariam as lembranças um emaranhado no qual eu não teria culhão pra me aventurar. As sessões de cinema da minha vida foram momentos poderosos – que não digo que tenham mudado minha vida per se –; mas, de alguma forma, se vistas em conjunto e numa linha cronológica continua, são índices das mudanças da minha vida.

Eu diria que há basicamente dois tipos de sessões de cinema pra mim: as que interessam pelo que as envolve, pelo que elas significam num contexto maior das coisas – a garota, a reunião com os amigos, a saída com a família, o sentimento de expectativa infantil, as risadas… –; e a segunda categoria, que é a das sessões de cinema que me marcaram pela experiência estética, intelectual e emotiva dos filmes em si – sessões em que, basicamente, vi um filme foda pra caralho, e que o fato de tê-lo visto no cinema (no escuro, na tela grande e iluminada) e em determinadas condições amplificou essa fodeza do filme.

E por isso que não há outra maneira de enumerar essas sessões se não em ordem cronológica, inclusive porque não saberia como ordená-las em nível de preferência ou de importância. Aliás. Não confundir as melhores sessões de cinema com os melhores filmes, porque são coisas bem diferentes. Zodíaco, por exemplo, é um dos meus filmes favoritos; porém, quando o vi no cinema, a sessão não me atingiu de maneira particularmente marcante, e só percebi toda a força do filme quando o revisitei em DVD. Por outro lado, algumas sessões com filmes bem ruins (como verão adiante) foram marcantes por razoes outras que não a qualidade desses filmes em si (ainda que eu tenha lá meu afeto pela grande maioria dos filmes listados nesse post).

Inicialmente, pensei em fazer um texto único enumerando algumas sessões que não representariam, na lista, apenas a si mesmas, mas também outras sessões que me causaram emoções parecidas. Mas vi que isso não seria suficiente, e que esse tipo de lista me obrigaria a fazer aproximações e comparações que eu não julgo fiéis a essas idas ao cinema. Por isso, resolvi escrever uma série de posts – pra acabar sabe-se lá quando, mas gostaria que até o dia 24 de junho. Em ordem cronológica, com imagens dos pôsteres, e pequenos comentários acerca do porquê de essas sessões desses filmes integrarem a lista.

Primeiro, minha idéia era me limitar a lançamentos comerciais, filmes de circuito que ajudariam a contar a historia da minha vida também pela época em que foram lançados. Mas claro que isso não daria conta de tudo, e quando comecei a pensar no numero de sessões impressionantes que tive em festivais e mostras (algumas delas em DVD, vejam só – mas creio que só haverá um caso bem específico em que citarei um filme visto em DVD, ainda que numa tela grande), cheguei a conclusão de que teria de abrir algumas (muitas) exceções. Chegaremos a elas no momento certo; é meio óbvio que, de inicio, enquanto me movo pela infância e adolescência, não haverá menção a essas sessões de festival e afins.

Ainda que seja uma divisão difícil de ser feita em alguns casos, devo retomá-la: a ideia é que houve sessões que marcaram mais pelo entorno e pelo que significaram para mim em outras instâncias do que necessariamente pelo filme em si; e outras cuja experiência de assistir a uma obra tão fantástica em condições tão ideais é que toma o centro da lembrança. E cada uma das duas sessões fodas que se aproximam pode ser, pelo menos em expectativa, encaixada claramente nessas categorias. Experiência estética foda: estreia dia 24 de junho o ganhador da Palma de Ouro em Cannes, Árvore da Vida – que já vinha me chamando a atenção desde o ano passado, cujo trailer absurdamente fantástico e arrepiante eu já vi algumas vezes, e cujo diretor fez o aparentemente lindo O Novo Mundo (do qual já vi algumas imagens estonteantes, mas ainda não tive a oportunidade de assisti-lo inteiro, assim como aos outros três da elogiada filmografia do Malick). Das sessões que têm um significado mais amplo, que extrapola o filme: o exemplar final da série Harry Potter estreia dia 15 de julho – e os filmes da saga têm sido uma maneira de alongar a relação bem próxima e afetiva que mantenho com os livros e com história; relação essa que, no último dia 20, completou exatos 11 anos, curiosamente a idade de Harry no primeiro livro, e mais curiosamente ainda a minha idade quando li o primeiro livro, que ganhei EXATAMENTE no meu aniversário de 11 anos, no dia 20 de junho de 2000.

Depois desse nada breve prólogo – longo não por acaso, afinal é de expectativa e reconstituição que trata a coisa toda –, vamos, sem mais delongas, à lista das sessões de cinema mais marcantes da minha vida.

1. Infância.

Aladdin, de Ron Clements e John Musker (idem, EUA, 1992)

É curioso que eu não tenha nenhuma lembrança clara do primeiro filme da lista. Acho que nunca mais o revi direito desde então. E a memória falha mesmo quando tento trazer à mente detalhes dessa primeira sessão (que nem tenho certeza se foi, de fato, o primeiro filme que vi no cinema). A imagem que surge na lembrança é a das portas duplas da sala de cinema se abrindo, e lá no fundo estava a tela brilhante com os créditos começando a rolar – a sessão ainda não tinha terminado por completo, e o lanterninha não nos queria deixar entrar (não sei a quem o “nos” se refere, muito provavelmente a mim e à minha mãe, mas tenho a leve lembrança de que talvez houvesse mais alguém lá, um amigo e o pai dele ou algo assim). Lembro de ver o gênio cantando alguma música (os créditos do filme são assim?). De alguma maneira, aquele abrir das grandes portas duplas e a proibição do lanternina de entrar no filme naquele momento criaram em mim uma sensação de imponência ritualística da ida ao cinema – aquele era um local de acesso restrito, uma sala mágica na qual eu poderia entrar apenas quando estivesse tudo pronto para a minha chegada.

Tenho a impressão de que isso foi no Shopping da Gávea, no lugar onde hoje é algum dos teatros, anos antes de o shopping deixar de ter cinema, quando as escrotíssimas poltronas de couro do Estação Vivo ainda estavam a séculos de distância. Também tenho alguma lembrança de ver A Bela e a Fera, mas acho mais provável que tenha sido em VHS mesmo – se eu já tenho a impressão de que essa lembrança do Aladdin pode ser completamente inventada (o IMDb me informa que aqui no Brasil o filme foi lançado em julho de 1993 – ou seja, eu tinha 4 anos), ver A Bela e a Fera no cinema é uma possibilidade ainda mais remota (julho de 1992, 3 anos).

O Rei Leão, de Roger Allers e Rob Minkoff (The Lion King, EUA, 1994)

Mais uma vez, a memória me escapa. Não lembro de estar dentro da sala de cinema e ver o filme se desenrolando na tela. Mas, por alguma razão, me lembro de ver o nome do filme na parte de fora do Cine Leblon – aquele painel branco com os nomes e horários dos filmes escritos com grandes letras vermelhas de plástico. Novamente, é uma imagem totalmente dissociada do filme que de alguma maneira me trouxe a sensação de que a sala de cinema era um lugar especial e sagrado. (E, mais uma vez, não me surpreenderia se algum dia eu me desse conta de que essa lembrança também não tenha acontecido).

Menino Maluquinho - O Filme, de Helvecio Ratton (idem, Brasil, 1994)

Vejam, o filme tem passagens memoráveis que nunca saíram da minha cabeça: os muleques jogando taco na rua, o Bocão se levantando no meio da aula e dizendo: “Quero ser igual ao John Lennon! ‘We all live in a yellow submarine, yellow submarine, yellow submarine…'”, o passeio de balão, os bigodes do avô do Maluquinh0, a morte dele, a cena final (“ele cai de pernas pro ar! E ele cai de bunda no chão! Mas ele agarra todas! Ele agarra todas, ele agarra…”). Não tenho nenhuma convicção de que eu tenha visto qualquer uma delas no cinema, mas gosto de acreditar que sim.

Ace Ventura - Um Maluco na África, de Steve Oedekerk (Ace Ventura - When Nature Calls, EUA, 1995)

Preparem-se para ver um grande número de seqüências aqui, o que tem muito a ver com a ideia de que estamos sempre a tentar recuperar, por todas as vias possíveis, algo que já passou e a que não temos mais como acessar. (Pouco provável, no entanto, que o tal Steve Oedekerk tivesse isso em mente ao fazer essa beleza de filme). O sucesso do primeiro Ace Ventura por aqui não foi compartilhado por mim, que jamais vi o filme. Mas um amigo meu se amarrou, e o pai dele levou nós dois ao Barra Shopping para ver esta belíssima seqüência (atentem para o sagaz duplo sentido do título original em inglês). Lembro de, já nos meus tenros 6 anos, eu achar meio constrangedoras as piadas escatológicas. A que ficou – infelizmente – impressa em minha memória foi uma que envolvia a cabeça do Jim Carrey e o traseiro de um elefante. Sim, senhoras e senhores, é lamentável: a primeira lembrança clara que eu tenho de um filme no cinema é o topete do Jim Carrey na bunda de um paquiderme.

Babe, O Porquinho Atrapalhado Na Cidade, de George Miller (Babe: Pig in the City, Austrália, 1998)

Babe, o Porquinho Atrapalhado, de Chris Noonan (Babe, Austrália/EUA, 1995)

101 Dálmatas, de Stephen Herek (101 Dalmatians, EUA, 1996)

102 Dálmatas, de Kevin Lima (102 Dalmatians, EUA / Reino Unido, 2000)

Aqui, a questão da confusão entre um original e sua seqüência é ainda mais flagrante. Tenho certeza de que vi esses filmes no cinema, mas nem a trama nem a data de cada um deles me ajuda a ter certeza quais foram. Me parece igualmente provável que eu tenha visto algum dos Babe com 6 ou 9 anos, e não seria fora de propósito se, mesmo aos 11, eu tivesse ido assistir a um filme dos Dálmatas.

Aliás, esse filme dos Dálmatas se mistura a outra lembrança particularmente forte. Lembro que fui assisti-lo com uma prima minha, uns 15 anos mais velha que eu (ela já devia ter seus vinte e tantos nessa época). Costumavam rolar lá em casa umas reuniões de família, nas quais eu invariavelmente, depois do almoço, terminava enfurnado no quarto jogando video game com o meu irmão. Lembro que essa minha prima me acompanhava, e ela me ajudou a passar de várias fases no genial Donkey Kong 2 pro saudoso Super Nintendo. Ela era, pra mim, a definição da palavra “maneiro” (eu ainda não conhecia o termo cool naquela época, mas, se conhecesse, provavelmente eu o teria usado) – ela com seu piercing no nariz, seu penteado engraçado e seu despudor em falar palavrões. Sem contar, é claro, que ela era (é) Fluminense.

E aí, num dia em que a reunião estava particularmente chata, ela resolveu me levar pro Cine Leblon pra ver o tal do Dálmatas. Não achei o filme particularmente divertido, mas lembro que só a sensação de ir ao cinema “sozinho”, sem meus pais, foi gloriosa.

Power Rangers - O Filme, de Bryan Spicer (Mighty Morphin Power Rangers: The Movie, EUA/Japão, 1995)

Não sei se posso colocar Power Rangers no mesmo balaio desses seriados japoneses ou derivados (Jiraiya, Jaspion, Black Kamen Rider, Cybercops), mas ele sempre foi meu favorito. Não acredito que haja muitos motivos ocultos para o motivo – ele era o que fazia mais sucesso por aqui. As estruturas dos episódios eram esquemáticas e óbvias, os efeitos especiais sofríveis, as lutas bizarramente coreografadas, e mesmo assim a criançada se amarrava em tudo aquilo.

Talvez fosse mais fácil se identificar com a simplicidade arquetípica da cois. Não falo de divisões inequívocas entre bem e mal, mas da esteriotipação dos personagens – que chegava ser grotesca e racista. Na primeira formação da série, o ranger preto era um negro e a ranger amarela uma vietnamita. No filme, essa caracterização foi “sutilmente” invertida: o ranger preto passou a ser um carinha com traços japoneses e a ranger amarela uma mulher negra. A ranger rosa era uma clara patricinha e o ranger azul um nerd. Só faltava o ranger vermelho ser, sei lá, um índio… (o nome do personagem era Rocky DeSantos, vai ver era pra ele ser mexicano ou espanhol, o que não melhora muito as coisas).

Tudo isso só pra tentar criar uma reflexão em cima de Power Rangers, o que não é fácil. No fim das contas, o apelo era o da aventura e da porradaria mesmo, a ideia de colocar uma armadura que te transforma num maluco foda, de montar um robô gigante maneiríssimo. Os bonecos que “viravam a cabeça” (lembrar deles agora me faz pensar como diabos eu não achava bizarra essa troca de rostos) e o Megazord sem dúvida eram brinquedos irados.

Toy Story, de John Lasseter (idem, EUA, 1995)

O que dizer de Toy Story que já não tenha sido dito melhor e mais detalhadamente por outros? A complexidade e profundidade dos personagens, a genialidade de usar os então primitivos efeitos de computação gráfica a favor, tornando brinquedos de plástico o centro da narrativa, the sense of wonder tipicamente infantil de descobrir um mundo nas pequenas coisas (o vaso de plantas da sala se torna uma selva, a distância entre as janelas de vizinhos se torna quase instransponível), os números musicais precisos e facilmente apaixonantes (ainda mais para uma criança de seis anos), e a força inesgotável de uma imagem como 0 nome de Andy na sola do sapato de Woody.

James e o Pêssego Gigante, de Henry Selick (James and the Giant Peach, Reino Unido/EUA, 1996)

Infelizmente, nunca vi esse filme, que parece lindo – e cuja animação em stop-motion ofereceria um contraste comparativo interessante com Toy Story.

Lembro que minha mãe nos levou para ver esse filme no cinema do Museu da República, no Catete. Mas chegamos muito atrasados (coisa normal na nossa família), e não pudemos entrar no filme. Ou talvez já estivesse lotado. Ou talvez eu simplesmente tenha visto o cartaz desse filme lá pelo Museu e tenha inventado essa história.

Porque, na verdade, a única coisa que eu lembro com clareza desse dia é estar sentado em uma cadeira da bombonière, comendo um pão de queijo, olhar pra esse pôster na parede e sentir uma leve pontada de tristeza. E, não sei, pode ser que, naquele dia, a tristeza não tivesse nada a ver com o filme. Eu só sei que agora as duas coisas (esse cartaz do filme e a vaga sensação de melancolia) me são completamente indissociáveis.

Space Jam - O Jogo do Século, de Joe Pytka (Space Jam, EUA, 1996)

Eu nunca fui um grande fã de basquete, apesar de gostar do jogo e de achar que eu poderia ter sido mais ligado no esporte. Entretanto, ali entre 1996-1997, não tinha como não gostar de basquete. Michael Jordan tinha feito seu retorno triunfal às quadras, e ver os Bulls jogarem é uma das grandes memórias da minha infância. O duelo do Chicago de Jordan contra o Utah Jazz de Karl Malone naquelas finais de 96-97, eu, meu pai e meu irmão assistindo a todos os jogos, é inesquecível. Certamente foi esse fenômeno que fez a galera do colégio trocar a atividade do recreio, temporariamente, de mini-campeonatos de futebol no pilotis para partidas improvisadas de basquete com a tabela meio ferrada que tinha nos fundos do pátio. E certamente foi ele também que fez querer ir ver esse filme no cinema.

O filme entrou em cartaz aqui no Brasil no Natal de 96, segundo me informa o IMDb. O jogo final entre os Bulls e o Jazz foi no dia 13 de junho de 97. Como eu vi esse filme no cinema do CCBB, não me parece de todo impossível que ele tenha ficado meses em cartaz e que eu só tenha ido vê-lo muito tempo depois de ele ser lançado, na época das finais mesmo.

Porque nem me lembro quando o CCBB parou de passar filmes do circuito comercial; mas, mesmo na época em que passava, suponho que ele devesse ficar com as sobras, e que um blockbuster como Space Jam só fosse passar nele depois de muito tempo.

Lembro que, novamente, chegamos atrasados no filme, só que dessa vez a mulher nos deixou entrar. Mas não sei que bizarrice aconteceu, porque não achamos lugar, e eu lembro de ter que sentar no chão. E vi o filme amarradão assim mesmo. Pescoço torto, olhando pro alto. Desde I Believe I Can Fly até o emocionante jogo final, acompanhei tudo com atenção.

O filme me empolgou tanto que depois devo tê-lo alugado umas dez vezes em VHS, e lembro que minha mãe me deu de presente um livro do Space Jam no estilo Onde Está Wally? – cada página dupla era o desenho de uma cena do filme, e tínhamos que encontrar o Jordan no cenário, além de outros itens, como bola de basquete, peças do uniforme do Tune Squad (time do Pernalonga), e afins.

Space Jam foi um filme tão marcante que, durante muito tempo, o Bill Murray foi, pra mim, “aquele cara foda, mas meio velho, que aparecia no final do jogo decisivo contra os time de aliens, jogava pra cacete e ajudava o Jordan e os Looney Tunes a vencer”.

007 - O Amanhã Nunca Morre, de Roger Spottiswoode (Tomorrow Never Dies, Reino Unido / EUA, 1997)

Batman & Robin, de Joel Schumacher (idem, EUA / Reino Unido, 1997)

Esqueceram de Mim 3, de Raja Gosnell (Home Alone 3, EUA, 1997)

Menino Maluquinho 2: A Aventura, de Fernando Meirelles e Fabrizia Pinto (idem, Brasil, 1998)

Dr. Dolittle, de Betty Thomas (idem, EUA, 1998)

O Príncipe do Egito, de Brenda Chapman, Steve Hickner e Simon Wells (The Prince of Egypt, EUA, 1998)

Vida de Inseto, de John Lasseter e Andrew Stanton (A Bug's Life, EUA, 1998)

007 - O Mundo Não É O Bastante, de Michael Apted (The World Is Not Enough, Reino Unido / EUA, 1999)

Castelo Rá-Tim-Bum - O Filme, de Cao Hamburger (idem, Brasil, 1999)

O Pequeno Stuart Little, de Rob Minkoff (Stuart Little, Alemanha / EUA, 1999)

Toy Story 2, de John Lasseter, Ash Brannon e Lee Unkrich (idem, EUA, 1999)

Aqui, uma série de seqüências, blockbusters, filmes-família – todos clássicos entretenimentos de férias para moleques entre 8 e 10 anos. Não os agrupei por nenhum motivo específico a não ser a época – tenho lembranças de assisti-los todos com a mesma empolgação, com a mesma sede de aventuras, com a mesma vontade de encontrar um mundo divertido onde tudo era possível. Claro que alguns deles são sofríveis – um Eddie Murphy em decadência falando com animais, um Esqueceram de Mim sem Macaulay Culkin (e com um roteiro bizarro do John Hughes; a ponto de, quando o vi no cinema, eu, minha mãe e meu irmão – sempre atrasados para a sessão – termos por alguns momentos acreditado que estávamos na sala errada, levando em conta o estilo de espionagem tosco e carregado do início do filme), e um Batman com mamilos (que, como todos sabemos, são um assunto muito polêmico).

Os dois 007 são meio indiscerníveis (e podem ser facilmente colocados entre os piores da série), fato que passou despercebido para quem se amarrava no fantástico GoldenEye do Nintendo 64 e que, à altura do Mundo Não É o Bastante, já estava começando a notar garotas e por isso não reclamava de ver um filme com as presenças nada discretas de Sophie Marceau e Denise Richards.

Os brasileiros, por outro lado, não são de maneira nenhuma descartáveis. Apesar de eu não ter, do segundo Menino Maluquinho, lembranças tão fortes quanto tenho do primeiro, me surpreendi com a informação de que foi dirigido pelo Meirelles. E Castelo Rá-Tim-Bum é excelente: a criação de Cao Hamburger conseguiu manter a força da série da TV Cultura, mesmo com outros atores nos papéis infantis (manter um cara de trinta anos pro Nino não teria nada a ver mesmo) e mandando pra escanteio todo o cenário do castelo, cuidadosamente detalhado nos episódios para a TV (porque também não teria cabimento ser o mesmo cenário reduzido utilizado para a TV). Uma passagem que eu lembro de me ter chamado particularmente a atenção é quando o Nino, que passara o filme inteiro frustrado por não conseguir preencher as páginas em branco do seu livro de feitiços, começa a escrever sem parar quando traça o plano de como recuperar o castelo das garras da tia malvada. A alegria dele mais tarde, quando os tios lhe chamam a atenção pro fato de que escrevera no livro sem se dar conta, foi totalmente compartilhada por mim, que já naquela época alternava momentos de total incapacidade de escrever com longas redações prolixas para o colégio, muitas delas com mais de cinco páginas (a maioria ilustrada com desenhos maneiríssimos que eu me amarrava em fazer – e que, devo dizer, ficavam bem bons pra idade. Sem nenhuma técnica, mas com muita criatividade).

Lembro de ter me impressionado com os visuais épicos d’O Príncipe do Egito (com destaque, claro, pra cena da abertura do Mar Vermelho). E sempre achei Vida de Inseto subestimado. Claro que não está à altura das outras obras-primas da Pixar, mas ainda assim bebe na genialidade de Toy Story (usando a artificialidade da computação gráfica naquele momento a favor da trama, centrada em tornos de insetos; e também criando uma ideia de mundo a partir de pequenas coisas – tem uma cena fantástica em que o personagem principal é levado pelos outros insetos a uma “metrópole”, que é uma espécie de mistura entre um mercado cigano e Las Vegas – e enxergamos que a cidade é toda feita de embalagens e latas e restos de produtos de supermercado).

O Pequeno Stuart Little é mais um filme com essa ideia de trabalhar a partir dos detalhes; eu provavelmente gostaria de qualquer coisa com essa vibe diorâmica [sei lá se existe essa palavra, mas estou falando de maquetes aqui, hahah], e Stuart Little se relaciona com isso literalmente.

E tudo desemboca no fantástico Toy Story 2, seqüência blockbuster de família, que é o que faz de maneira mais impactante (pelo menos foi pra mim) a passagem desse mundo de detalhes, de maquete, para o “mundo lá fora”. Eu, garoto preocupado com detalhes, que sempre gostou de desenhar mapas e que era viciado em Sim City, me empolguei desde o início com a cena em que um restaurador conserta o Woody, aperfeiçoando os mínimos detalhes – costura no ombro, limpeza dos olhos, e a perfeita (mas heartbreaking) pintura na sola da bota. E já estavam  implicados os problemas da perfeição das maquetes, e no decorrer do filme esse mundo de minúcias passa a coexistir (mas sem ser completamente substituído) pelo grande mundo lá fora. E tudo culmina na fantástica cena do aeroporto (e minha memória talvez esteja confundindo tudo, mas estou convencido de que o trecho da perseguição pelas esteiras de bagagem é o embrião da incrível cena final das portas em Monstros S.A.), onde tudo é muito maior que a selva do vaso de plantas da sala do Andy.

Titanic, de James Cameron (idem, EUA, 1997)

Sim, eu chorei.

A Múmia, de Stephen Sommers (The Mummy, EUA, 1999)

Difícil explicar o apelo que esse filme tem sobre mim. Mesmo gostando muito de Indiana Jones, foi A Múmia o filme que, de alguma maneira, se tornou para mim a tradução de uma história de aventura. Talvez por eu tê-lo visto no cinema, o que certamente potencializou o apelo que o filme tem como uma narrativa clássica de aventura. Partir da calma de uma biblioteca para uma aventura no deserto me parecia a passagem perfeita para entrar num mundo novo (talvez acreditando, na época – e talvez ainda hoje – que, mais que no cinema, a chave para um mundo fantasioso de possibilidade está na literatura).

Star Wars: Episódio I - A Ameaça Fantasma, de George Lucas (Star Wars: Episode I - The Phantom Menace, EUA, 1999)

Nessa imagem talvez esteja metaforizado tudo o que estou tentando fazer nesse post. O passado como uma sombra que se lança sobre o presente. A necessidade obsessiva de encontrar o sentido do que nos cerca pela descrição, pela enumeração. A memória coletiva e a reconstrução do passado através da cultura pop.

Antes desse filme, eu não era um fã ardoroso de Star Wars (não que eu seja hoje, mas gosto bem mais e tenho uma afeição muito maior pelos filmes do que meu eu de dez anos tinha). Não fazia muito os VHS da trilogia original tinham sido relançados em versão remasterizada; eu tinha visto e achado bacana, divertido, mas talvez fosse novo demais para mergulhar fundo na mitologia da coisa. E, pra falar a verdade, quando fui com um amigo no recém-inaugurado Downtown para ver o filme, eu nem lembrava em detalhes das tramas da trilogia original. Fui meio confuso com a ideia de ver só agora o começo de uma história cujo desenlace eu já tinha visto. Já nessa confusão temporal se insinua o que está no cerne desse post.

Assisti ao filme com empolgação, mas sempre com a pulga atrás da orelha, porque eu tinha certeza de que não estava entendendo algo. Algo para além da trama política que envolvia Federações de Comércio, Chaceleres e Senadores, e a Natalie Portman fingindo ser uma servente quando na verdade era a Rainha Amidala (na época, não entendi porque aquela moça bonita de repente virou a rainha).

Saí do filme bastante empolgado, porque tinha me divertido bastante com a corrida de pods e a luta de sabres de luz com o Darth Maul. Mas ainda meio encucado. Só entendi o que era quando, passando pelo corredor de saída, me deparei com esse pôster aí em cima. Fiquei olhando para ele alguns momentos.

“… aaaaaAAAH. Então o garotinho vai VIRAR O DARTH VADER”, exclamei eu, empolgado com a minha sagacidade (ou assim pensava eu). Meu amigo fez o favor de me tirar a ilusão de esperteza. “Nossa, SÓ AGORA que você entendeu? TODO MUNDO já sabia disso ANTES do filme”.

E eu ficando encucado de novo (além de triste com a minha ignorância, claro). “Pôxa, mas pra quê isso? Pra que contar uma história que todo mundo já sabe como vai terminar?”. Menos do que uma maneira de me assegurar que “it’s about the journey” (isso eu entendia, por isso gostava tanto d’A Múmia e de filmes de aventura em geral), menos do que saber da importância de um prólogo (o que eu sabia, como se pode ver pelo meu apreço por momentos de expectativa e preparação), eu não conseguia entender por que fazer esse movimento de retorno, de busca pela origem.

Garotinho pós-moderno que eu era (e talvez ainda seja), não via sentido em acabar com o mistério do Darth Vader, não via por que remontar um mundo já perdido (a era de ouro da República de Star Wars, completamente em ruínas na trilogia original), não via motivo para materializar a sombra. Em outras palavras: não queria acabar com o mistério.

Mas o paradoxo é – sempre foi – que a recusa em desvendar o mistério também é a morte da jornada.

E eu nunca soube lidar com isso. As grandes mitologias de mundos ficcionais (os milhares de spin-offs de Star Wars que povoam as galáxias e sistemas e planetas apenas citados nos filmes; os vários apêndices e outros livros descrevendo a Terra Média em Senhos dos Anéis; os detalhes e mapas e descrições diorâmicas dos livros de RPG) são em certa medida uma recusa à narrativa. Porque histórias se pautam pela tensão entre o que se conta e o que não se conta. Preocupações com narrativas all-encompassing e mundos descritos com minúcia acabam com qualquer senso de mistério. Dar bases tão mundanas, pequenas, e factuais (disputas burocráticas de um Federação de Comércio) para uma aventura épica do Bem contra o Mal teve em mim uma espécie de “efeito desencantador”.

E ainda assim. Ir em busca desse conto de origem do Darth Vader, saber dos detalhes, mapear a história… isso é necessariamente uma nova jornada. Ir em busca de. O mistério, o vazio que existe no centro de tudo isso, só se constitui como algo palpável e minimamente interessante quando há essa série de signos a cercá-lo. Algo pulsa por sob a listagem quase didática dos checkpoints da trilogia original – R2D2 e C3PO sendo construídos pelo Anakin, Jabba The Hutt aparecendo na corrida de pods, Coruscant aparecendo, Anakin morando em Tatooine… em alguma medida é preciso empreender essa busca, não é? E é preciso se munir de mapas e objetos reconhecíveis para se poder lançar ao desconhecido, não acham?

Por isso faz sentido tentar desvendar o mistério, por isso é necessário esse processo de reconstituição (ir em busca de), por isso a importância da memória (que talvez nada mais seja que, munido de um mapa capenga, se lançar no desconhecido), por isso que eu estou escrevendo esse post, não é?

… não é?

Desavergonhada e desesperada busca por audiência: nesse post vou falar mal (como o título pretende sugerir) da banda mais babaca da cidade, e falar relativamente mal do Barcelona. Primeiro motivo da escrotice no texto: escrever pra falar mal e descer a lenha no trabalho dos outros é chato pra caralho e coisa de quem não tem o que fazer (a segunda opção, incrivelmente, não é [mais] o meu caso).

Vem aí mais um texto que não estou com paciência, tempo, ou disposição para domar, numa tentativa de torná-lo mais interessante, coeso, esteticamente agradável, ou minimamente interessante. Taí o segundo motivo da escrotice – insisto colocar tudo no papel de uma vez só e fingir que essas notas sobre qualquer coisa vão ter alguma relevância pra alguém. A escrotice vai ser maior ainda porque vou defender que essa pretensa despretensão – rá! -, essa disposição ao improviso e ao acidente, todas elas têm seu valor e no fim das contas são de alguma forma melhores que planejamento cuidadoso e tentativas muito (auto-)conscientes de se criar ou transmitir significados ou ideologias.

E claro que defender conscientemente essa opção no início do texto já sabota a coisa toda irremediavelmente.

Vamos ver se no meio do caos planejado consigo me fazer entender.

Há um mês mais ou menos, algum post em algum lugar me conduziu aos vídeos de um moleque de 17 anos que estão fazendo algum sucesso no Youtube. Os vídeos consistem basicamente em clipes de 3 minutos juntando cenas e músicas de alguns dos diretores indie mais hypados dos últimos dez anos (a saber, Danny Boyle, Sofia Coppola, David Fincher, Wes Anderson e Baz Luhrmann), no que me parece um misto de homenagem e algo que o cara sinceramente acredita ser uma replicação da “sensação que eles causam no espectador”. Tudo o que esses vídeos fazem, me parece, é simplificar os trabalhos dos bons diretores da lista (Coppola, Fincher, Wes Anderson) e evidenciar a já óbvia superficialidade dos filmes dos diretores ruins (Boyle, Luhrmann).

Com os diretores ruins, não me importo (tudo bem que do Luhrmann só vi Moulin Rouge! e Australia, mas não gostei de nenhum dos dois); o Danny Boyle raramente acerta em seus filmes que estetizam a sujeira e o sofrimento, em histórias que no fim das contas são vazias – sinto que o videozinho de três minutos realmente dizem tudo o que há pra dizer sobre o cara. Nesse sentido, inadvertidamente o moleque fez uma excelente crítica ao diretor que ele tanto gosta (e justamente por ele gostar tanto é que ele enxerga essa acidental crítica como homenagem e elogio).

Por outro lado, ele simplesmente torna superficiais os trabalhos mais profundos, complexos e interessantes de Wes Anderson e, em menor escala e de maneira mais problemática e inconsistente, de Sofia Coppola (dos fantásticos As Virgens Suicidas e Maria Antonieta, do bom mas problemático Encontros e Desencontros e do fraco Um Lugar Qualquer) e David Fincher (cuja contradição é maior: fez um filme ruim – Se7en -, e um péssimo – Quarto do Pânico. Tem dois filmes de razoáveis/quase-ruins – Vidas em Jogo e Clube da Luta; e um mediano/quase-bom – Benjamin Button. Fez, no entanto, duas obras-primas absolutas: Zodíaco e A Rede Social). Que os filmes dessa galera sejam videoclípticos, ninguém discorda, afinal os três já dirigiram videoclipes e/ou comerciais. Todos eles têm uma trilha sonora indie e descolada. E certamente todos, em alguma medida, tem um zeitgeist-y feeling por lidarem com o mundo por uma via esteticamente apelativa, todos se pautando pelo que nesses anos 2000 passou a ser visto como um alternativismo cool – Wes puxando prum lado mais nerd, engraçadinho e kitsch; Coppola para um lado mais introspectivo, melancólico e reflexivo; e Fincher com uma roupagem mais energética, pseudo-anárquica e violenta. Pessoalmente, acho os três diretores bastante diferentes, mas acho que entendo (ainda que não consiga explicar) o conjunto de coisas e tendências que faz com que muitos ponham os três no mesmo saco. Se você for assistir aos três clipes que o moleque fez sobre eles, sem nunca ter visto um filme desses diretores, vai sem dúvida achar muitos pontos em comum.

Porque, em tempos em que até videoclipe e trailers têm teaser, o que importa é pegar alguns pontos de referência sobre cada assunto e juntar tudo numa roupagem legal (retomando o post anterior: tempos wikipédia, facebook, etc. E indo mais longe: de tumblr, vimeo, wordpress – rá![2]). Parece que você começa a olhar em volta (ou seja, na internet, ou na zona sul do Rio de Janeiro, o que é mais ou menos a mesma coisa), e você vê tudo em caixinhas, e dá pra identificar todo mundo direitinho, do que essas pessoas gostam, do que não gostam… e perfis de facebook só confirmam, e vídeos no YouTube só confirmam, e conversas na rua só confirmam.

Mas o que eu queria falar era outra coisa.

Queria falar de uma caixinha específica, na qual eu provavelmente me incluo, e amigos meus se incluem… talvez seja mais fácil falar de dentro, ainda que seja parcial e olhar em volta não seja assim tão fácil. O problema é que eu me sinto sempre meio por fora, mas enfim… a questão é que parece que existe muito hoje dia uma coisa de a questão estética ser um fim em si mesmo; quero dizer, todo mundo edita no Final Cut e gosta da Apple, todo mundo é fotógrafo, todo mundo escreve, todo mundo fez um curta ou uma peça ou uma música, todo mundo acha que faz design, todo mundo entende de cinema, todo mundo faz coisas tão bonitas…

e ainda assim não era isso que eu queria falar, e a via que eu ia usar pro que eu queria falar era outra, mas o fim do parágrafo anterior já denuncia, não era pra ser esse o gancho, mas foda-se: e aí vem e me começa a fazer sucesso a banda mais forçada da cidade. Apropriado.

Eu ia fazer o gancho pra falar desse clipe maldito de uma maneira meio irônica, dizendo que, em tempos de viajar de hiperlink em hiperlink, de achar que vídeos com mais de três minutos são longos demais pro YouTube, (tudo bem, hiperlinkar algo, ainda mais algo tão gOLD como esse vídeo de três anos atrás, soa irônico pra caralho, mas o vídeo é bom demais), que tudo envelhece muito rápido, que videoclipes e blockbusters de ação valorizam um ritmo frenético, de overdose de informações – eu ia dizer que, diante de tudo isso, um vídeo de seis minutos gravado em plano-seqüência para uma música de apenas nove versos repetidos durante toda a duração da parada só poderia ser uma coisa boa.

Seria, não fosse ele a saturação dessas tendências todas que eu falei, misturadas e regurgitadas da maneira mais superficial possível. (A merda é que alguém, nalgum post perdido no facebook, disse isso melhor do que eu e em poucas palavras). Mas a coisa toda me soa como uma gororoba (talvez inconsciente em muitos níveis, mas acho que não) de diversas referências, tomadas no seu nível mais simplista e redutor: hippies, vegetarianos, estudantes de cinema, pessoal que se amarra em fotografia, que toca violão, que curte design, que tem um blog desde os quinze anos, que ouve MPB desde o berço, que curte tirinhas selecionadas (mafalda, liniers e talvez peanuts, mas não calvin e haroldo), que tem um mac em casa, que usa roupas quadriculadas, que acha bonito certas tosquices (tipo cantar um pouquinho desafinado), que adora poesia, que tem a barba mal-feita, que põe flor no cabelo (ou no bolso), que gosta de olhar pela janela.

Eu provavelmente me enquadro em mais de cinco das categorias acima, o que provavelmente denuncia o cinismo presente nesse post desde o início. Mas que também me explique porque esta merda me incomoda tanto. É como se esse vídeo pegasse muitos dos filmes, livros e filmes de que gosto, e tornasse tudo artificial, forçado, vazio. E como se, nesse processo, me denunciasse a mim mesmo – talvez por me fazer achar em alguma medida que é um clipe que de fato faz transparecer o vazio de muitas das coisas de que eu gosto; e que eu me deixei definir por essas coisas e que é por isso, em última instância, que isso tudo me dá tanta raiva: porque me faz ver o vazio em mim mesmo.

Puta merda. Não falei que esse era o post mais escroto?

O nome da banda é o que torna tudo mais abissalmente artificial. Que tipo de grupo se auto-intitula “a banda mais bonita da cidade” sem nenhuma dose de ironia? Aparentemente, a mesma que pretende falar da complexidade do coração dizendo que nele cabem mais coisas que numa despensa – ou seja, o amor, três vidas inteiras, uma penteadeira e duas pessoas. Tudo isso num clipe em que pessoas parecem o tempo todo estar tentando ao máximo parecer naturais ao representar idéias de felicidade, como ao simular trocas de olhares apaixonados ou ao forçar uma irritante risada ao final da música; num clipe que mostra um casal negro no típico estilo “estamos preenchendo a cota negra” das novelas da Globo e do BBB; num clipe e numa música em que o nome “oração” só parece estar ali pra justificar o plano-seqüência (que foi feito porque é “bonito”) e a repetição infinita dos mesmos versos rasos. (e sugestivo que, além de “oração”, haja uma música da banda que se chame “lobotomia”. Dois nomes perfeitos pruma banda que parece reproduzir inconscientemente e de maneira vazia procedimentos largamente estabelecidos).

Tudo me parece muito calculado e artificial (e talvez o grande problema é que todo mundo no clipe talvez realmente acredite no que canta e no que representa, numa posição quase inversa à do poeta que finge que é dor a dor que deveras sente), muito forçado e vazio, e por isso mesmo asséptico, clean, sem força. É tudo de muito bom gosto. Não há espaço para acidentes, ou para sangue, ou para baixo calão. (Talvez aqui coubesse melhor aquela citação que o Superoito fez ao Bolaño). Pouco provável que algum desses caras goste de Superbad. Ou de John Carpenter. Ou de Brian de Palma, que ironicamente deve ser um dos cineastas que melhor utilizou o plano-seqüência na história do cinema. Ou de Trovão Tropical. Quando tudo é arrumadinho e organizado, muito bonito, plasticamente adorável, não há espaço para os acidentes, para a força pulsante do erro, ou para o “sangue, ferimentos mortais e fetidez”.

E aí chegamos porque às vezes me irrita o time do Barcelona (e, por extensão e na verdade mais intensamente, a galera que fala que é o time mais maravilhoso que já viu jogar). O time é foda, os resultados são inquestionáveis, o Messi é genial, Xavi e Iniesta jogam pra caralho, não discuto nada disso. Mas tudo me parece planejado e organizado demais, fruto de anos e anos de tática e de uma mesma “filosofia de trabalho, ideologia do futebol” aplicada nas categorias de base do Barcelona. Nenhum problema nisso, até me espanta que mais clubes no mundo não tenham enxergado o óbvio (no Brasil, talvez tenham, mas falta grana) e investido nas categorias de base e começado a formar o time desde que os muleques tinham treze anos.

Mas, por outro lado, da maneira que foi feito o Barcelona me parece quase robotizado, previsível – ainda que de uma previsibilidade avassaladora, como um furacão que todo mundo sabe que vai chegar e mesmo assim não há meios de conter. Troca passes até chegar no gol (e talvez só faça mais gols que a seleção da Espanha – campeã do mundo que menos gols fez em sua campanha vitoriosa – por causa do Messi), sempre tem a maior posse de bola… por mais que o Messi seja foda, a característica fundamental do Barça é o passe, não o drible. O que até soa mais plausível e correto, porque futebol é jogo coletivo, e o passe reflete isso, ao passo que o drible premia a individualidade… mas, sei lá, às vezes essa individualidade – essa diferença – não me parece tão ruim, pelo menos enquanto ela não se tornar norma e estilo a ser seguido.

Sei lá, tem muitos problemas em se tentar metaforizar pra vida algumas coisas que se vê no futebol. Mas me incomodou muito a maneira como os caras da ESPN falavam do Barcelona – um time com um conceito, organizado, tático, constante, regular… não é isso que quero pro futebol, nem pra vida, eu acho. Tanto planejamento engessa muito as coisas. A visão é meio simplista, mas me é inevitável.

Falaram que a diferença do Barcelona e do Brasil de 70 ou a Holanda de 74 é que essas seleções brilharam e jogaram muito por sete jogos, e o Barça já encanta há 180. Mas é precisamente isso que faz dessas seleções algo muito mais especial que o Barcelona. O PVC não parava de falar que esse Barcelona é algo único. Mas será mesmo? Me parece que é um time fruto de planejamento, de ensaio, de trabalho duro, muito mais do que de talento. Não há problema nenhum nisso, mas acho menos impressionante um time ir aos poucos se acertando e começando a jogar muita bola ao longo de 180 jogos do que uma seleção que nunca jogou junta, que não tem o menor entrosamento, chegar e encaixar magicamente durante os sete jogos mais importantes da vida dos caras. Por isso que, pra mim, é essencial que o Messi, pra provar ser tão foda quanto parece ou quanto pode ser, jogue muito numa Copa do Mundo. Porque é  que se prova a genialidade. Chegar num time em que não se conhece ninguém direito, ir talvez pra cidades e campos que nunca viu na vida, e em mês – sete jogos – arrebentar. Jogar pra caralho num lugar onde se conhece todo mundo, onde se está há dez anos, onde tudo é familiar não é a mesma coisa que fazer o que Ronaldo já fez, o que Pelé já fez. Ronaldo jogou apenas uma temporada no Barcelona, e nela fez um número de gols que o Messi precisou de um bom tempo pra superar. Pelé já chegou destruindo na sua primeira Copa do Mundo com 17 anos. Messi tem 23 e já teve passagem apagada por duas.

A galera me fala que quando eu ou outra pessoa se recusa a comparar Santos a Barcelona, ou Pelé a Messi, é caso de saudosismo, de uma nostalgia que insiste em ver no passado um tempo melhor do que o presente. O meu caso está longe disso (ainda mais se for pra considerar que tanto em música quanto em cinema conheço e tendo a gostar mais de coisas mais recentes); e, na verdade, acho que essa coisa toda é um sinônimo justamente do contrário: de que, atualmente, queremos acreditar em qualquer coisa que nos dê a ilusão de estar presenciando um acontecimento importante, de ser testemunha de um momento crucial na história do mundo, da cultura, do esporte. Um momento em que o revisionismo está muito em voga justamente pra cada um poder dizer que “viu o melhor de todos os tempos” em tal coisa. Revivals das décadas de 70, 80 e 90 acabam servindo mais pra que quem as viveu intensamente diga que elas foram mais fodas que as outras do que pra qualquer outra coisa. Listas de “melhores de todos os tempos” são comuns, assim como “maiores” (“maior bilheteria”, “maior número de exemplares vendidos”, “maior número de visulizações no Youtube” – porque é foda, a indústria da música tá mal mesmo).

Mas, novamente, me desvio do ponto. Se é que havia um ponto pra começo de conversa, um ponto que não o de desabafar e falar pelo simples prazer de fazer barulho.

Ainda que falar só pra fazer barulho tenha seu charme, em tempos em que as coisas que pretendem ser simples são feitas em plano-seqüência. Falar desenfreadamente, sem pudores, sem pensar muito.

O que é obviamente não é o que fiz aqui, visto que esse post tá na minha cabeça há dias e eu tenha pensado e repensado sobre o assunto, e que tudo aqui é hiperlinkado e referente a milhões de coisas, fazendo citações de maneira altamente calculada, e por isso que é escroto, tão escroto – achar que de alguma forma a ironia (também planejada) de escrever um texto de maneira corrida e não-editada (ou seja, preguiçosa) num blog do wordpress pra depois postar no facebook, a ironia de ser um muleque que se enquadra em muitas das categorias citadas (e que só não se enquadra em mais porque ainda não arranjou dinheiro pra comprar um mac nem teve paciência pra aprender fotografia), a auto-consciência sarcástica que falta à banda mais careta da cidade, achar que de alguma forma todas elas me salvam – e a esse post – da escrotice é ingênuo e cínico.

Não salvam.

E é tudo tão falso que mesmo esse post eu só fiz como prelúdio pra outro – bem mais legal e feliz e divertido, ainda que tão auto-centrado quanto -, um prelúdio planejado. Se aqui reclamo de reprodução desenfreada de referências (inconsciente, sem critério), se falo de falta de tempo e de pular de hiperlink em hiperlink; se falo de assepsia, de constância, de automatização e de falta de capacidade de se perder, de se abrir pro desconhecido… tudo isso é com o intuito de forçar um gancho pra falar de coisas que importam, coisas que pressupõem o mistério. E o deslumbramento. E a insegurança. E a abertura. E a atenção a uma coisa só. E a reflexão. E a profundidade. E o tempo.

O próximo post vai ser bem melhor que esse, e vai falar sobre as melhores sessões de cinema da minha vida. Porque tudo isso que eu falei aqui eu sinto que é a antítese de ir ao cinema. De sentar no escuro e se perder. Ver um filme na tela grande é foda pra caralho.

Mas, não, cara – nem o cinema da tela grande salva mais esse post de ser o mais escroto desse blog.

E eu tava indo tão bem.

… não, não tava. Mas gosto de pensar que sim.

 

P.S.: É um p.s. muito necessário, ainda que quebre a tentativa de terminar o texto de maneira minimamente “estilosa”. É claro que o motivo máximo de esse post ser tão abissalmente escroto (além do pouco engraçado humor auto-depreciativo) é ter levado tão a sério a banda mais escrota da cidade, a ponto de ter perdido umas três horas pra fazer um post gigante que ninguém vai ler baseado na irritação com o referido clipe.

Depois de ver The Social Network duas vezes no cinema, depois de ficar alguns meses com o filme de David Fincher na cabeça, depois de muitas anotações tentando entender a minha fascinação por ele mesmo depois de tanto tempo, e finalmente depois de tentar, sem sucesso, escrever dois textos analisando-o em certa medida, admito minha incapacidade e falibilidade em tentar pôr em palavras organizadas a força que esse filme tem. Ficam as notas soltas que foram mais ou menos organizadas em parágrafos desconexos, uma bagunça de pontos de vista e informações que eu tentei mas não consegui organizar, Zodiac-like. Ei-los:

David Fincher filmou o roteiro de Aaron Sorkin à risca – ou pelo menos é isso o que transparece na tela. A estrutura dramática do filme fica clara: Mark Zuckerberg conversa frente a frente com Erica Albright, sua namorada. Jim Emerson notou: falam em código. Não o código-fonte que Zuckerberg usou para criar o Facebook, mas os códigos sociais que regem as relações em uma faculdade. Esse código, Zuckerberg não domina. A velocidade da conversa é proposital – e talvez Sorkin não se dê conta disso, mas ele era o cara ideal pra escrever esse roteiro justamente por isso: por se prender às superficialidades do discurso, da cuidadosa construção e colocação de palavras em um diálogo, e também por sua própria incapacidade de perceber que essa obsessão é incapaz de dar conta dos personagens de maneira mais profunda. Fincher – que também é um cineasta de superfícies, do videoclipe, da publicidade – faz o filme da maneira mais horizontal possível. A Rede Social sempre olha seus personagens de uma certa distância, não tenta nunca fazer um movimento de se aprofundar na psicologia deles. Talvez porque não seja possível fazê-lo: não há psicologia, não há personagens, há apenas silhuetas, ou ainda, perfis de facebook.

O nome facebook é sugestivo: um caderno de rostos. É um filme de rostos, sem dúvida – assim como (Jim Emerson novamente o diz melhor do que eu) Zodíaco era um filme sobre mapas, and the ultimate map of that film era o rosto de uma das vítimas do Zodíaco. Fincher retorna ao tema aqui, mas se em alguma medida era possível tentar mapear o sofrimento daquele garoto (só pra, na tentativa, ficar claro que não era uma dor mapeável), em A Rede Social nem essa tentativa é possível. O rosto de Eisen-Zuckerberg é uma cifra, um enigma – esse código não pode ser decifrado. Talvez porque, justamente, não haja o que decifrar. Não se pode saber. Jesse Eisenberg entrega a interpretação mais monstruosa do ano ao conseguir criar flutuações de sentimento, indicar a possibilidade de existência de uma confluência de sentimentos abaixo da superfície, ao mesmo tempo em que mantém o rosto vazio, a blank slate.

É crucial a escolha da atriz que interpreta Erica Albright, porque ela tem um rosto expressivo (o que fica totalmente à mostra na cena em que ela, lacrimejando, vê dois garotos brincarem com as maldades que Mark escreveu sobre ela na internet).

E a conversa face-to-face que Mark tem com ela no início do filme é talvez o último momento em que ele estabelece esse contato sensorial, em que ele olha diretamente para o rosto de alguém. A caminhada longa do bar até o alojamento é também o caminho que o filme propõe – de relações frente a frente, cerveja na mão, olho no olho, passa-se a se relacionar com telas, a viver na internet, como coloca o personagem de Justin Timberlake.

Ao final do filme – num evidente estruturalismo de roteiro –, fecha-se a caminhada: se Erica Albright dissera a Mark que ele era um babaca, ao final a assistente da firma de advocacia diz que ele não é um babaca de verdade, mas apenas tenta demais ser um. E “tentar parecer” é o que está em voga no facebook. Não importa se Mark é ou não um babaca – o filme escaneou a sequência de eventos que fizeram com que ele se tornasse o bilionário mais jovem do mundo e mesmo assim não conseguiu chegar a nenhuma conclusão sobre ele. Tudo o que o filme tem a dizer de Mark Zuckerberg no final é justamente isso: ele é o bilionário mais jovem do mundo.

E o ciclo também se fecha porque o diálogo presencial do início, música, barulhos de bar e profusão de palavras, falas mais rápidas do que somos capazes de acompanhar, é substituído pelo silêncio opressor do final, em que Zuckerberg melancolicamente fica atualizando a página de Erica no Facebook, esperando que ela aceite sua requisição de amizade. O plano / contraplano do início – do rosto dele para o rosto dela – é substituído pelo plano / contraplano do rosto dele para a tela do computador, onde se vê a página de Erica no facebook, e mal se pode enxergar a foto dela, muito menos o rosto, tão evidente e pungente na primeira cena do filme.

É esse silêncio que permite que a literalidade da afirmação final (“Mark Zuckerberg é o bilionário mais jovem do mundo”) seja verdadeira: aboliu-se a conversa no bar, a caminhada de minutos, e sobrou o perfil no facebook, que coloca tudo em termos – códigos – simples, simplistas. A rede social está na internet, e nunca foi maior – nem mais vazia.

****

E, apesar de toda a carga negativa e sombria – que deve ser creditada em grande parte à (Academy Award Winning, olha só quanta classe) cold-to-the-bone trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross – que David Fincher coloca sobre a internet e o facebook e o relacionar-se sentado atrás de uma tela de computador ao invés de em uma mesa de bar, o diretor também não se nega a, com seu talento video-clipado e publicitário, criar momentos que de alguma maneira tornam a idéia algo atraente. Ou melhor: diversos momentos-chave do filme têm uma carga sedutora dicotômica, por parecerem perversos e patológicos mas ainda assim serem atraentes em alguma medida. Claro que as duas coisas estão relacionadas, são inter-causais. E não consigo me decidir se são momentos que a princípio parecem divertidos e empolgantes pra, no fundo, se revelarem problemáticos e escrotos, ou se são cenas que parecem perversas mas que você sente que, no fundo, são, de alguma maneira, idéias atraentes. Listando-as: (i) a frat-party, rica e regada, com garotas-objeto sensualizando editada, videoclípticamente, em alternância com a cena em que Mark cria o Face-Mash bebendo cerveja e ele e os seus amigos se empolgam com a repercussão do site; (ii) concurso de programador do Facebook com muita música e bebida; (iii) groupies do face pagando boquetes para os fundadores no primeiro encontro; (iv) jantar japonês boladão com Sean Parker do Napster (Justin Timberlake in all his awesomeness); (v) álcool e drogas, putaria desenfreada, e tirolesas na piscina em Palo Alto; (vi) noite em boate boladona (comparadas a qual as baronettis e nuths da vida provavelmente não passam de um socialzinha simples) acompanhado de (Justin Timberlake in all his awesomeness) [2] e modelos da Victoria’s Secret; (vii) festa de um milhão de usuários do Facebook, novamente muito regada e com várias college girls descontroladas. Parece-me um atestado de excelência do filme que, a meu ver, todas essas cenas sejam ao mesmo tempo pertubadoramente erradas, mas tenham, ao mesmo tempo, em algum nível, um forte poder sedutor (ambiguidade que eu tentei – mas suponho não ter conseguido – transmitir na maneira como descrevi essas passagens).

A única cena que, em retrospecto, eu sinto que contém alguma afetuosidade, que tem um tom algo nostálgico e bastante carinhoso, por mais incrível que possa parecer, é a Caribbean Night. Em toda a sua akwardness, ou pura e simples tosquice, ela me parece divertida de uma maneira pura, e tola – e por isso mesmo revigorantemente ingênua dentro do contexto do filme. Ela não é, como todas as cenas acima descritas, atraente e perversa em si mesma. É Zuckerberg quem traz a ela um tom frio e jocoso, que não me parece existir nela no início. De fato, ela não é nem atraente em sua tosquice (mas por causa dela que é divertida), nem perversa mesmo quando sugere que nela estão imbricados os mesmos códigos sociais que regem o Facebook e as outras festas do filme (mesmo a estereotipação de orientais e judeus feita por um dos colegas de Mark não me soa com o mesmo tom misógino e preconceituoso que outras falas mais sutis do filme explicitam – ou escondem, dependendo do ponto de vista). Nessa cena vislumbro algo da amizade que realmente acredito haver entre os dois personagens – Zucker-Eisenberg e Wardo Garfield -, e enxergo só o lado bom das bobeiras e idiotices da faculdade.

(Reverse Shot merece ser citada aqui; como no link em que eles fazem observações similares sobre o filme há milhares de outros pequenos textos, reproduzo os trechos abaixo).

“Best Montages: The Social Network
The Social Network may or may not be the best film of the year, but at the very least one can’t argue with its craft. Nowhere is this more evident in the film’s early montage in which a young, drunk and spurned Mark Zuckerberg plants the seeds that would lead to the creation of Facebook by starting a website called Facemash in which two photos of girls are placed side-by-side so that viewers can vote on which they found more attractive. Fincher intercuts Zuckerberg’s drunken programming binge (framed as the nerdo equivalent of the beefing-up training sequences from more conventionally masculine films) with an evening at one of the school’s elite social clubs in which hottt girls are literally bused in to drink, smoke, and make out with a pack of rich douchebags in matching ties and blazers. Rich douchebags with whom, the film posits, Zuckerberg desperately wanted to be friends. Fincher’s carefully choreographed, floating camera movements coupled with Trent Reznor’s hypnotically ambient score certainly suggest a level of heightened unreality—is this perhaps just all in Zuckerberg’s head? That there is some ambiguity (and, it should be noted, huge entertainment) in what is usually the hoariest of big studio constructions is a testament to the fact that someone was paying attention to things like, oh, shots and how they go together when the movie was made. —Jeff Reichert”

“Best Shimmy ’n’ Shake: Andrew Garfield in The Social Network
It’s basically a throwaway. Monomaniacal mind ablaze with the ideas that will soon coalesce into Facebook, Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg) enters a droopy “Caribbean night” dance at Harvard’s Jewish fraternity looking for friend Eduardo Saverin (Andrew Garfield). Eduardo—decked out in a gaudy Hawaiian print shirt and a beachcomber hat as vertical as his gravity-defying coiffure—spots Mark near the door and begins to move toward him. Rather than stride over, however, Eduardo steps in time to the limp house mix (complete with wikkedy-wikkedy-wa DJ scratches and languid steel drums). He continues to get his groove on as he approaches Mark, splaying his arms in a “who me?” pose while bopping his head and shoulders in time to the music’s stutter-step rhythms. And then there’s the face: wide-eyed and mouth half agape, a priceless look of faux “party time” doofiness. As performed by Garfield, it’s a delightful non sequitur. But given The Social Network’s relentless pace, stormy tone, and torrents of rat-a-tat-tat verbiage, Eduardo’s silent shuffle (captured by director David Fincher in a leisurely pan) feels like some kind of goofy grace note. It’s a poignant reminder that, for all its zeitgeist-y sheen, The Social Network is also about the dissolution of a friendship, one whose specific rhythms—Eduardo prying Mark out of his techno-shell; Mark staring back with a mixture of begrudging affection and barely contained annoyance—are captured in this single image. Eduardo will soon be shooting daggers across a conference table at his former business partner and friend, Hawaiian prints traded in for chilly three-piece suits. In this moment, however, he’s just a tipsy college sophomore, hoping that his buddy will crack a smile. —Matt Connolly”

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É essencial notar a maneira como a análise superficial que o filme faz – ou, melhor dizendo, a análise de superfícies – só é efetiva porque é uma superficialidade que vai aflorando aos poucos. Como se o filme tivesse um turbilhão de sentimentos sob ele, um turbilhão que enruga e cria fissuras e rachaduras em sua superfície (como um mar revolto, um terremoto, um vulcão em erupção); mas um turbilhão que, aos poucos e à força, é esmagado pela força avassaladora e achatadora do facebook. No início, uma imagem com peso, com sentimento – a desolação, a raiva, a tristeza do garoto que perdeu a garota -, mas é um peso que os poucos vai sendo subtraído, até no final não sobrar nada, e a imagem ficar totalmente plana. Talvez seja o caso de dizer que se trata, sim, de um filme superficial, o tempo todo – mas, de início, é uma superfície que apresenta relevo, que sugere alguma profundidade, que parece esconder alguma coisa. Ao passo que, ao final, temos uma imagem planificada, que não parece esconder nada. “Não há mistério”, diria Roberto Bolaño[1]. A raiva e a desolação só sobraram na gente: a imagem é o rosto indiferente de Eisen-Zuckerberg, the ultimate blank slate no qual podemos projetar qualquer merda que queiramos conjecturar.

Nesse sentido, também é importante a noção de o filme se ancorar, em seu início, nas noções de mapas e detalhes advindos de Zodíaco (e, porque não, também de Benjamin Button, filme que, de maneira desastrada mas interessante, reúne um cuidadoso escaneamento de uma linha temporal – nada mais, nada menos, que a História, com ‘h’ maiúsculo, do século XX –, ajuntamento de detalhes e datas, e um rosto que gradativamente perde as rugas e a personalidade – ora, se não é o mesmo processo da imagem em A Rede Social), se de início o filme se dá ao trabalho de em legendas informar local e data, de registrar detalhadamente a caminhada de Mark do bar ao alojamento, se se permite parar um instante para mostrar um plano detalhe da cerveja que Mark bebe, se tem o cuidado de mostrar a hora e a minutagem de cada uma das ações do personagem na noite em que criou o famigerado FaceMash (olha os rostos aí de novo), nas cenas de julgamento não temos muita noção de quando ou onde se passam os acontecimentos. O específico, o detalhe palpável, vira pastiche internético, virtual. Claro, as especifidades importam no filme, e não à toa uma das falas mais emblemáticas é quando Mark se indigna com os Winklevii no julgamento: “if you guys were the inventors of Facebook, you’d’ve invented Facebook” (e me parece intencional que a fala tenha sido dita, na minha opinião, com a ênfase completamente errada – afinal, Mark e a internet são tone-def, e Eisenberg sublinha a palavra invented, quando me parece que o importante da afirmação é mesmo o nome onipresente do site, Facebook). O que está em jogo e deve ser dito aqui é que o Facebook – como qualquer outro meio de comunicação – não é apenas mais um meio de se dizer o que se quer dizer; não é simplesmente um outro lugar para nos relacionarmos como sempre nos relacionamos. Qualquer calouro de Comunicação ouve até a exaustão que “o meio é a mensagem” – e é óbvio que, salvo certo excesso auto-importante na afirmação, esse conceito é relevante. Os add-nos da internet não são simplesmente mais um recurso; eles tornam as nossas maneiras de se comunicar qualitativamente diferentes. É essencial compreender as superfícies (ha-ha). Entender que só porque o Facebook reproduz alguns códigos sociais instituídos, não quer dizer que ele seja a mesma coisa que falar ao telefone, ou conversar pessoalmente – essa história de que todas as relações são virtuais de qualquer maneira, não tem como se relacionar de maneira direta e verdadeira com ninguém, porque não há o real, e toda essa merda.

Mas o paradoxo do Facebook é que sua especificidade, sua qualidade mais marcante é justamente a que é ressaltada por Mark durante todo o filme: “ainda não sabemos bem o que ele é”, “ele ainda está em formação”, “nunca vamos saber ao certo o que é o Facebook, ele estará sempre em transformação”, etc. A idéia muito interessante de conteúdo livre na internet, o teor colaborativo de uma Wikipédia da vida, a própria posição (algo visionária) de Mark de se recusar a vender seu primeiro aplicativo pra Microsoft e subi-lo de graça na web. Ou seja: a grande especificidade do Facebook é permitir que todas as outras especifidades existam nele, sua grande abertura a todos os tipos de apps. O que me parece que, aos poucos, vai apagando a sua própria identidade – como acontece com o clima do filme, essa coisa de ir se soltando dos detalhes geográficos e temporais –, e, ao ficar aberto para tudo, se torna essa blank slate que Mark incorpora ao final do filme. (O próprio FIncher, diretor publicitário que é, aos poucos parece ir perdendo as marcas que o tornaram famoso – é claro que The Social Network e Zodiac são filmes muito estilosos e de visual bastante identificável, mas são surpreendentemente contidos perto do material mais antigo do diretor. O próximo filme de Fincher, a refilmagem do drama norueguês – ou sueco ou sei lá – The Girl With The Dragon Tatoo, aponta para os dois aspectos. Se por um lado se baseia num outro filme, parece algo que não vai lhe permitir seguir o caminho que vem trilhando com Zodíaco, Button e Social Network, por outro lado parece que a trama encarna alguns excessos de violência e patologia que, apesar de existirem em boa dose nos últimos filmes, não tinham a mesma carga visual que teve em seus primeiros filmes). A própria performance de Eisenberg parece calculada para atingir esse efeito – se, de início, vemos muito movimento de sobrancelha, um rosto caricato e exagerado de desolação/raiva quando Erica o abandona sozinho na mesa de bar, expressões engraçadinhas, etc., aos poucos esses excessos vão sumindo, o rosto de Zucker-Eisenberg vai ficando cada vez mais petrificado na mesma expressão de indiferença, até o devastador final, em que o filme e o rosto não conseguem expressar mais nada, Mark não parece transmitir nenhuma emoção ao tentar adicionar Erica no Facebook, aquilo deveria significar tudo pra ele, mas não parece significar porra nenhuma, e a solidão opressora, a sala asséptica com as luzes da cidade ao fundo, pela janela, e o plano/contraplano seco, e o ódio e a desolação e a melancolia, que a essa altura são só nossos, e a legenda simples, sem mistério, e o rosto, e o silêncio.

What did you see, when you were there? Nothing that doesn’t show.

Baby, you’re a rich man.

 


[1] O link é menos pra informar aos desavisados quem é Bolaño (a quem interessar possa: o meu autor favorito no momento, depois de ter lido a obra-prima Os detetives selvagensabaixo –, e lendo o também devastador 2666), e mais pra fazer uma brincadeira com (e explicar) o fato de que, com toda a minha pelação de saco pra cima do sensacional The Social Network, ainda acho Zodíaco um filme melhor (um dos meus favoritos dos últimos tempos, devo acrescentar). E para excelentes textos sobre os dois filmes, leiam o posts do Jim. Também é o caso de recomendar os textos do Superoito, que pouco ou nada têm a ver com o presente post – acho que ele nem gosta muito de A Rede Social -, mas que são fodas pra caralho.

http://blogs.suntimes.com/scanners/the_social_network/

http://blogs.suntimes.com/scanners/2007/03/zodiac_digital_and_analog.html

http://blogs.suntimes.com/scanners/2007/09/opening_shots_zodiac.html

http://blogs.suntimes.com/scanners/2007/03/hurdy_gurdys_and_aqua_velva_mi.html

http://blogs.suntimes.com/scanners/2008/01/the_dirty_harry_scene.html

http://blogs.suntimes.com/scanners/2008/01/three_kinds_of_violence_zodiac.html

Michel Bulteau, rue de Téhéran, Paris, janeiro de 1978. Não sei como conseguiu meu telefone, mas uma noite, devia ser mais de meia-noite, ligou para minha casa. Perguntou por Michel Bulteau. Eu disse: sou eu. Ele disse: sou Ulises Lima. Silêncio. Eu disse: bem. Ele disse: que bom ter encontrado você em casa, espero não ter acordado você. Eu disse: não, não acordou. Silêncio. Ele disse: gostaria de vê-lo. Eu disse: agora? Ele disse: bom, é, agora, posso ir à sua casa, se você quiser. Eu disse: onde você está?, mas ele entendeu outra coisa e disse: sou mexicano. Eu me lembrei então, muito vagamente, que havia recebido uma revista do México. O nome Ulises Lima, em todo o caso, não me era familiar. Eu disse: já ouviu os Question Mark? Ele disse: não, nunca ouvi. Eu disse: acho que são mexicanos. Ele disse: os Question Mark? Quem são os Question Mark? Eu disse: um grupo de rock, evidentemente. Ele disse: eles tocam mascarados? Num primeiro momento não entendi o que ele disse. Mascarados? Não, é claro, não tocam mascarados. Por que tocariam? No México há grupos de rock que entram em cena mascarados? Ele disse: às vezes. Eu disse: parece ridículo, mas pode ser interessante. De onde está telefonando? Do hotel? Ele disse: não, da rua. Eu disse: você sabe como chegar à estação de metrô Miromesnil? Ele disse: sei, sei, nenhum problema. Eu disse: daqui a vinte minutos. Ele disse: estou indo pra lá e desligou. Enquanto eu vestia o blusão, pensei: mas nem sei que cara ele tem! Que cara têm os poetas mexicanos? Não conheço nenhum! Só uma foto de Octavio Paz! Mas este, eu intuía, com certeza não se parecia com Octavio Paz. Pensei então nos Question Mark, pensei em Elliot Murphie e em algo que Elliot me disse quando estive em Nova York: a caveira mexicana, o cara que chamavam de a caveira mexicana e que só vi de longe num bar da Franklin Street com a Broadway, em Chinatown, a caveira mexicana era um músico, mas eu só vi uma sombra, e perguntei a Elliot o que tinha aquele cara que ele queria me mostrar, e Elliot disse: é uma espécie de lagarta, tem olhos de lagarta e fala feito lagartas. Como falam as lagartas? Com palavras duplas, Elliot disse. Bom. Estava claro. E por que o chamam de caveira mexicana?, perguntei. Mas Elliot já não ouvia ou estava falando com outro, de modo que supus que o cara, além de ser magro feito um cabo de vassoura, devia ser mexicano ou devia dizer ao mundo que era mexicano ou devia ter ido ao México em algum momento da vida. Mas não o vi de cara, só sua sombra atravessando o bar. Uma sombra sem metáforas, vazia de imagens, uma sombra que só era uma sombra e que assim já bastava. Então vesti o blusão preto, escovei os cabelos e saí à rua, pensando no desconhecido que tinha me telefonado e na caveira mexicana entrevista em Nova York. Da rue de Téhéran à estação do metrô Miromesnil dá só uns quinze minutos,  andando a bom passo, mas é preciso atravessar o Boulevard Haussmann, depois percorrer a avenue Percier e parte da rue de La Boétie, ruas que a essa hora são quase mortas, como se, a partir das dez da noite, fossem bombardeadas com raios X, e pensei então que teria sido melhor marcar o encontro com o desconhecido na estação Monceau, o que me teria levado a fazer o caminho inverso, da rue de Téhéran à rue de Monceau, depois à avenue Ruysdael, então a avenue Ferdousi, que cruza o parque Monceau, cheio, naquela hora, de drogados, traficantes e policiais melancólicos, policiais chegados ao parque Monceau vindos de outros mundos, trevas e lentidões que preludiam a aparição da Place de la Republique Dominicaine, um lugar afortunado para um encontro com a caveira mexicana. Mas meu itinerário era outro e o segui até as escadas da rue Miromesnil, que encontrei desertas e imaculadas. Confesso que nunca como nessa noite as escadas do metrô me pareceram tão sugestivas e ao mesmo tempo tão impenetráveis. Seu aspecto, porém, era o mesmo de sempre. O ponto de inflexão eu logo descobri, quem o colocava eram eu e minha aquiescência em me encontrar com um desconhecido em horas intempestivas, algo que em geral não costumo fazer. Tampouco, por certo, tenho o costume de me esquivar dos convites do acaso. Ali estava eu, e era isso que contava. Mas, além de um funcionário que lia um livro e certamente esperava alguém, não havia ninguém nas escadas. De modo que comecei a descer, decidido a esperar cinco minutos, depois ir embora e esquecer por completo esse incidente. Na primeira virada, encontrei uma velha enrolada em farrapos e papelões, dormindo ou fingindo dormir. Alguns metros mais adiante, olhando para a velha como quem olha para uma cobra, vi um cara de cabelos compridos e negros, cujos traços talvez pudessem corresponder aos de um mexicano, embora a esse respeito minha ignorância seja abissal. Parei e o observei. Era mais baixo do que eu, usava um casaco de couro bastante puído, tinha quatro ou cinco livros debaixo do braço. De repente pareceu acordar e cravou os olhos em mim. Era ele, sem dúvida. Ele se aproximou e me estendeu a mão. Um aperto estranhíssimo. Como se, ao apertar a mão, introduzisse um misto de sinais maçônicos e senhas do submundo mexicano. Um aperto de mão, de qualquer modo, coceguento e morfologicamente estranho, como se a mão que me apertava a mão carecesse de pele ou fosse só uma capa, uma capa tatuada. Mas esqueçamos a mão. Eu lhe disse que fazia uma linda noite e que fôssemos dar uma volta. Parecia que ainda estávamos no verão, eu disse. Ele me acompanhou em silêncio. Por um momento temi que fosse falar durante todo nosso encontro. Dei uma olhada em seus livros, um deles era meu, Ether-Mouth, outro era de Claude Pelieu, e os demais provavelmente eram de autores mexicanos de quem eu nunca tinha ouvido falar. Perguntei a ele quanto tempo fazia que estava em Paris. Muito tempo, respondeu. Seu francês era lamentável. Sugeri que falássemos em inglês, e ele aceitou. Caminhamos pela rue Miromesnil até o Faubourg St. Honoré. Nossos passos eram largos e rápidos, como se, tendo pouco tempo, nós nos dirigíssemos a um encontro importante. Não sou uma pessoa que gosta de andar. Mas naquela noite andamos sem parar, a toda velocidade, pelo Faubourg St. Honoré até a rue Boissy d’Anglas e dali aos Champs Elysées, onde tornamos a virar para a direita, até a avenue Churchill, onde viramos à esquerda, deixando às nossas costas a sombra equívoca do Grand Palais, diretos para a ponte Alexandre III, sem reduzir o passo, enquanto o mexicano ia desfiando, num inglês por momentos incompreensível, uma história que me custava entender, uma história de poetas perdidos, de revistas perdidas e de obras sobre cuja existência ninguém sabia palavra, em meio a uma paisagem que talvez fosse da Califórnia ou do Arizona ou de alguma região mexicana limítrofe com esses estados, uma região imaginária ou real, mas desbotada pelo sol e num tempo passado, esquecido ou que, pelo menos aqui, em Paris, na década de 70, já não tinha a menor importância. Uma história extramuros da civilização, eu disse a ele. E ele disse sim, sim, aparentemente sim, sim, sim. E perguntei a ele então: quer dizer que nunca ouviu falar dos Question Mark? Ele respondeu não, nunca ouvi. E eu lhe disse que precisava ouvi-los um dia, que eram muito bons, mas na realidade eu disse isso porque já não sabia o que dizer”

Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño.

Em algum lugar, uma Ferrari corre por uma estrada e some momentaneamente de vista enquanto faz uma curva. Ressurge em velocidade, avançando pela pista, só para sair de quadro segundos depois. Ainda ouvimos por alguns segundos o barulho potente do seu motor ir sumindo na distância.

Mas o avanço é apenas ilusório: pouco antes de sumir completamente, o ronco do motor volta a aumentar, e a Ferrari entra em quadro novamente, repetindo seu percurso. Faz a curva e mais uma vez vai embora. O carro faz essa volta três vezes antes de frear repentinamente. Após breve pausa, um homem sai do veículo e olha em volta.

 

Stephen Dorff, a.k.a. NOT-Bill-Murray, & Elle Fanning, a.k.a. Better-than-her-sister

O plano inicial de Somewhere é a síntese mais perfeita (porque simples – ou ainda, simplista) do mais recente filme de Sofia Coppola – chamá-lo de “novo” seria assumir que há algo nesse filme que o diferencia do trabalho anterior da cineasta, o que não me parece verdade. E é justamente nessa característica que enxergo o grande problema do filme. A análise mais simplista, a metáfora mais batida, a maneira mais preguiçosa de caracterizar o filme é também a mais precisa: Somewhere dá voltas e voltas e não sai do lugar.

Há duas questões que decorrem dessa afirmação. A primeira é a de que não há, a priori, nenhum problema intrínseco nessa maneira de se abordar as coisas. Recusar a tradicionalidade de uma dramaturgia de “superação”, de uma trajetória de personagem na qual o protagonista encontra dificuldades e sai dessa jornada como uma pessoa melhor do que quando começou – tudo isso pode ser bastante interessante, e o que não falta são exemplos de filmes fantásticos que partam dessa premissa cíclica (de Van Sant a Nolan). A própria Sofia Coppola fez, a partir dessa idéia, o bem mais interessante e bem-sucedido Encontros e Desencontros. Acontece que, nese Somewhere, o “vazio existencial do ser humano” ou qualquer baboseira do tipo só parece interessar a diretora como um fim em si mesmo; quero dizer, ela filma o tédio e a solidão só pra sublinhar o óbvio: que eles são entediantes e solitários. Como disse um amigo, essa história de que “o filme é de plástico porque a vida do cara é de plástico” não cola. Sendo, me parece, um arremedo mal-feito de Encontros e Desencontros, Somewhere quase nunca consegue infundir um senso de melancolia, nem de carinho, nem de doçura nesse mundo superficial que filma, seguindo à risca o clichê associado às estrelas de Hollywood.

O segundo ponto me parece ainda mais grave: Sofia Coppola parece de fato acreditar que está fazendo algo mais, que desse vazio está conseguindo extrair algum tipo de lição moral. O final do filme não passa de uma “tomada de consciência” do protagonista, que resolve deixar sua vida fútil pra trás e sair para enfrentar o mundo desconhecido. Soa brega, metáfora rasteira, e realmente assim o é. Que outra coisa enxergar no plano final, em que o protagonista abandona o carro no meio da estrada e sai andando sozinho – ainda mais considerando que o plano inicial é aquele que descrevi lá em cima?

Há um par de críticas antagônicas na Contracampo cujas leituras se aproximam da que fiz. Calac Nogueira reconhece a repetição de temas já abordados pela diretora, mas vê na “simplicidade” deste aqui algum interesse; crê que Somewhere “opera uma depuração formal deste sentimento (a melancolia), numa tentativa de torná-lo mais palpável por meio de uma dinâmica rigorosa de cena e de montagem, como se estivéssemos diante de uma exposição temática (ainda que também narrativa) de quadros”. E que, por causa dessa operação, o filme não é um passo atrás, não trilha novamente terreno já pisado pela diretora – mas que, ao contrário, consegue ir ao essencial de um sentimento que já estava presente em seus outros filmes.

Entretanto, não me parece que Coppola tenha ido à essência de nada, mas ficado apenas na superfície – ela, justamente, não consegue infundir no mormaço do cara a melancolia mais profunda que ali parece existir. E mais: essa tentativa de tornar a melancolia mais palpável por uma mise-en-scene rigorosa e o caralho a quatro soou, pra mim, como um exercício (vazio) de estilo. A mim não interessa que uma diretora, por mais talentosa que seja, use sua capacidade de encenação, posicionamento de câmera e uso da música pra plastificar aquilo que poderia ser interessante. Dito em termos simples, quase chulos: não vejo interesse num filme que consegue tirar a pungência de ‘My Hero’, do Foo Fighters, e a sensualidade de duas gêmeas loiras gostosas fazendo pole-dancing ao juntar os dois pra produzir um efeito ridículo. A mão pesou na caricaturização e qualquer senso de melancolia se perdeu. Esse procedimento funciona na gravação do comercial do Bill Murray porque, porra, it’s Bill fuckin’ Murray, cujo rosto transmite toda a melancolia do mundo quando quer. Por mais que Stephen Dorff não seja mau ator, ele não consegue segurar a cena, e o que era pra ser melancólico se torna apenas caricato.

Leonardo Levis faz uma crítica que se alinha mais com o que eu senti no filme: “Coppola faz um filme para dizer não às máscaras que compõem seu mundo, mas não sabe filmar outra coisa do que essas próprias máscaras”. E se há algo que me incomoda profundamente em Somewhere é isso: sinto nele um desejo profundo de tentar entender o que há por trás dessas máscaras, mas nunca sai da superfície. O par de palavras-chave é esse mesmo: um desejo de profundidade, num filme que nunca consegue deixar de ser superficial.

"There is a time when we all fail..."

Acho que aqui vale falar um pouco das minhas impressões com os filmes anteriores da cineasta. Gosto demais d’As Virgens Suicidas, justamente por ser um filme que reconhece sua incapacidade de entender seus personagens de maneira mais profunda. Desde o início, as garotas são enigmas que nós não conseguimos decifrar – e aqui o uso do pronome é preciso, porque é com os garotos que as admiram que se alinha o ponto de vista do filme. Nós só temos pequenos indícios, peças que não são suficientes pra montar o quebra-cabeça (não à toa citei o Van Sant lá em cima, já que seu Elefante me parece um dos melhores filmes a trabalhar essa idéia). A força de As Virgens Suicidas está em perceber que há algo – aí sim – profundamente hipnótico e belo em enigmas desse tipo.

Encontros e Desencontros é um filme-problema pra mim, porque sempre senti que deveria gostar mais dele do que gosto. Aliás, sempre quis gostar mais dele do que gosto. Em retrospecto, sempre achei que o filme fosse melhor do que na minha reação inicial a ele. Mas, nas duas vezes em que voltei a vê-lo, tive aquele sentimento de underwhelming; como se ainda faltasse algo pra que ele realmente me atingisse com pungência. Ainda assim, gosto de diversos momentos, e realmente sinto que há uma profundidade no relacionamento entre Bill Murray e Scarlett Johansson. Mérito dos atores, talvez, que são profundamente carismáticos; de qualquer forma, existe ali algo impalpável que foge a uma definição precisa (isso vindo de alguém que viu no famoso sussurro do Bill Murray no ouvido da Scarlett a mão pesada da diretora – um momento absolutamente genial e sensível, é verdade, mas ainda assim reconheço essa genialidade de maneira mais analítica que sensorial). E mesmo ali há o reconhecimento de que algo foge da esfera do definível – ou do representável, sei lá. Fato é que o filme não tenta, no final das contas, fingir que compreendeu o que os personagens são e sentem; ele não pensa que “desvendou o mistério”. E também não há, nisso, a busca de uma redenção propriamente dita – o filme é o encontro dos dois, e só; em nenhum momento se coloca isso como uma questão moral, como algo que apenas serve de escada para os personagens se tornarem “pessoas melhores” ou o que quer que seja – e, pra mim, isso é um grande mérito. [nota cerca de um mês depois de ter escrito o texto original: esses dias peguei o final de Encontros e Desencontros passando em algum canal da net, e pela primeira vez aquele sussurro final e o plano do Bill Murray no taxi me pegaram de uma maneira mais pungente. Talvez por ter visto a cena meio no susto, meio na surpresa; talvez justamente por vê-la descolada do resto, por si mesma. Ainda que essa sensação de descolamento, de algo separado do resto e fechado em si mesmo, esteja tentativamente presente em todo o filme, ela nunca se fez tão presente nas vezes em que o vi em toda a sua duração].

Não vi Maria Antonieta, mas só por se configurar como algum tipo de recriação de uma personagem histórica – e, ao que me parece, sem nenhuma tentativa de fidelidade a como “ela realmente era” ou qualquer coisa assim -, já parece fugir dessa tentativa de desvendar “a melancolia profunda”, de tentar dar conta de tudo o que mostra. Em Somewhere, percebe-se a tentativa de criação de um efeito cumulativo das cenas de tédio do protagonista; ainda que elas sejam razoavelmente desconectadas de uma das outras e de uma narrativa maior (que mal-e-mal se estrutura em torno do tempo que Dorff passa com sua filha, interpretada por Elle Fanning, irmã da Dakota), a impressão que fica é que esses momentos deveriam impulsionar a mudança de vida do personagem. E ainda assim a resolução final soa um tanto fora de lugar, como que forçada por uma necessidade de Coppola de dar esse desfecho ao personagem – e a si mesma, quem sabe; talvez seja ela quem queira escapar desse universo fechado e artificial. Simplesmente soa falso demais. E, digo outra vez, se era essa a intenção – fazer um filme de plástico sobre uma vida de plástico, no qual até mesmo a conclusão redentora não resulta de uma motivação mais profunda; Calac Nogueira fala de “uma imagem desencantada, direta, sem fundo, sem mistério – e melancólica exatamente por esta falta de mistério” -… bom, é o que eu digo: não vejo interesse algum nisso.

O que a mim fica claro é a extrema habilidade de Coppola em compor pequenos momentos, criar esquetes, fazer cenas que se sustentam por si mesmas. Isso fica mais claro, aqui, nos momentos que envolvem Elle Fanning – num filme tão morto, é impressionante como a garota consegue trazer alguma vivacidade à tela. Não sei se é a força do carisma da menina ou se é fruto desse rigor e capacidade de Sofia Coppola de criar pequenos momentos de encantamento em meio ao mormaço – mas é ponto pacífico que pelo menos em alguns pontos ela acertou a mão – como já o disseram os críticos da Contracampo e Fábio Andrade, na Cinética. Aliás, eu já tinha escrito esse texto algum tempo antes de a crítica dele ser publicada na Cinética, e pode parecer impressionante como inadvertidamente nossos parágrafos iniciais são parecidos. Mas não há nada de surpreendente nisso: afinal, como eu já disse, essa é a maneira mais óbvia e mais precisa de definir o filme. Apesar de eu discordar do tom elogioso da crítica, Fábio faz uma observação bastante precisa sobre um dos momentos luminosos de Elle Fanning: “a paixão que observava Scarlett Johansson de peruca rosa, encarnando Chrissie Hynde na

"Look how all the kids have grown, oh / We have changed but we're still the same"

interpretação de “Brass in Pocket”, e o amor que aflora com um número de patinação de Elle Fanning (que nos lembra o formato circular do primeiro plano e que é predominante em todo o filme, mas que aqui esbanja uma graciosidade que inexiste na dureza do Porsche)”. Momentos como esse, ao som de ‘Cool’, de Gwen Stefani, e as brincadeiras na piscina entre a garota e o pai, embalados por ‘I’ll Try Anything Once’ (versão minimalista do Strokes para a sua ‘You Only Live Once’), demonstram que Coppola seria mais talentosa como diretora de videoclipes. Ok, ok, mais uma vez, esse pode ser o ponto da coisa toda, mas não é um ponto muito interessante de se fazer.

Em Encontros e Desencontros, havia a vontade de se embutir mistério e peso na imagem, dar-lhe um relevo, infundir sentimento – algo por trás daquilo que está diante dos nossos olhos. Criava-se, então, um parêntese simples e intimista na vida monótona e melancólica daqueles personagens –  e a melancolia se fazia mais presente justamente porque o final do filme, por mais bonito que fosse, já estava descompassado com os personagens, que à força tinham que deixar aquilo para trás. Colocado nos termos desse último filme, Encontros e Desencontros se dá no espaço de tempo em que o cara sai do carro e olha em volta – vê a paisagem, respira ar puro, põe os pés no chão, sente o peso das coisas (os sentimentos bons e ruins) –; mas no fim das contas ele tem que voltar ao carro e retomar o percurso. Enquanto que Somewhere, ao contrário, o tempo todo está a subtrair esse peso, esse mistério, esse ar-puro/pé-no-chão da imagem; quer apenas o ar abafado e artificial dos interiores de hotel, a tal imagem sem mistérios. Se em Encontros e Desencontros intuíamos o artificialismo quando confrontávamos a vida tediosa dos personagens com aqueles momentos intensos que eles compartilhavam entre si, em Somewhere somos apresentados de frente a esse artificialismo para mal-e-mal intuir esse mistério e essa beleza além do quadro. No final do filme, um tanto quanto forçadamente, Stephen Dorff vai em direção a essa vida mais, sei lá, “significativa”, e nós somos deixados com o artificialismo. Não tem graça, Coppola; não quero só o videoclipe, quero os momentos reais de força e beleza. Analiticamente toda esse procedimento de deixar a beleza e a profundidade fora de quadro é até interessante, mas como filme não tem nenhuma força, desculpa. Não é exatamente que eu queira ver o que acontece quando o cara deixa o carro pra trás; não é isso. As voltas na pista podem ser uma coisa legal; mas se você vai ficar dando voltas e voltas ao redor do próprio umbigo, primeiro se certifique de que o seu umbigo é minimamente interessante. O seu já foi, Coppola, mas não me parece ser mais.

***

E o meu também não deve ser lá muito digno de nota, mas façamos mais uma tentativa. One more time, então, with feeling.

Eu tinha começado a rabiscar umas notas sobre a Copa do Mundo; sobre o uso de tecnologia na arbitragem, sobre o nível técnico do torneio, sobre os esquemas táticos, sobre os técnicos, sobre a a cobertura da imprensa, etc. Mas acho que é mais honesto assumir logo de início (a quem eu estava querendo enganar?): escrevo pra falar mal da seleção argentina.

Não, não é inteiramente brincadeira. Diante de tamanha superestimação do escrete argentino, é-me inevitável levantar a voz em protesto e dizer: companheiros, don’t believe the hype, a Argentina não é tudo isso.

Quando eu escrevo um texto como o “A cabeça do Dunga“, não estou apenas reclamando que o Zangado não convocou o Paulo Henrique Ganso ou o Ronaldinho Gaúcho. Estou reclamando de um, vá lá, “estado do futebol mundial”; um Calazans mal-humorado e perdido nas páginas d’O Globo (que merda, hein), sendo contra a demasiada importância atribuída ao técnico, aos esquemas táticos defensivos, aos jogadores brucutus de grande força física, etc. Crítica simplista sob certa ótica, eu sei, mas que ajuda a entender não só essa convocação do Dunga, mas porque essa Copa tem sido relativamente fraca até aqui.

Seleções menores, como a tão mal-falada Suíça, não têm alternativa ao jogo fechado; que habilidade têm esses times para se lançarem ao ataque, ao futebol criativo? Mesmo seleções com times mais habilidosos, vide Costa do Marfim e Portugal, precisam segurar-se na defesa contra um time de mais técnica e camisa, como o Brasil, se quiserem ter alguma chance. O Chile, stime habilidoso, resolveu lançar-se ao ataque e tomou 3×0 de uma seleção brasileira longe de seu melhor futebol.

Esse panorama se deve única exclusivamente à falta de bons jogadores – que são menos numerosos do que campanhas de marketing da Nike fazem parecer. Não há, nessa Copa do Mundo, tantos jogadores capazes de reescrever o futuro de uma partida. E mesmo os times com alguns desses caras à disposição optam por um futebol pragmático (Holanda e Brasil, e seu iminente confronto das quartas-de-final, são o melhor exemplo disso). Seleções badaladas como Argentina, Espanha e Inglaterra têm jogadores que se destacam individualmente em seus clubes, claro; mas estão, novamente, abaixo do hype.

E, já que enveredamos por esse lado, há que se fazer o advogado do diabo: é claro que um futebol plasticamente bonito não vale por si mesmo. É preciso o gol, a definição – o saudoso programa da Band, com genial simplicidade, não deixava de notar o óbvio: é o grande momento do futebol. A seleção da Espanha, por exemplo, joga pela lógica do acúmulo, do preciosismo, procurando sempre o toque mais bonito, o caminho plasticamente mais interessante – e que não necessariamente é o mais eficaz. Com todos os problemas que eu associo à lógica da eficácia (falando idealmente, como conceitos abstratos, talvez me atraia mais o jogo bonito que o jogo efetivo), é inegável que ela se faz imprescindível no futebol. Um jogo sem gol é o sexo sem orgasmo, preliminares que se alongam indefinidamente numa espécie de agonia que nunca atinge o clímax (eu sei, metéfora ridícula; qualquer dia eu posto um trecho do fantástico Fever Pitch, livro de Nick Hornby, que fala como comparar um gol com um orgasmo está longe de ser uma metáfora suficiente, ou mesmo boa).

E  talvez o grande problema do futebol hoje seja o de apartar esses dois conceitos – eficácia e beleza – de maneira inconciliável, como se só fosse possível montar, de um lado, um time quase artístico, de Messis, Ronaldinhos e Gansos (um time do drible, das jogadas maravilhosas) e, de outro, um time brucutu, eficaz, ganha tudo de 1×0, jogo aéreo e bola parada, sem criatividade nenhuma (a caricatura que eu mesmo criei do São Paulo tricampeão brasileiro). [A análise não é completa – a análise nunca é completa – porque é impossível categorizar a coisa toda de maneira tão estanque e com conceitos escritos em pedra. Ser profundamente analítico é também profundamente problemático. Superfícies não são de todo ruins…].

Mas aí, se por um lado temos um Dunga, que acredita nessa eficácia disciplinar, numa defesa bem montada e num time que prescinde de jogadores criativos, por outro temos essa Espanha preciosista que não sabe concluir (ouvi agora no SporTV que ela é o time que mais finalizou na Copa, mas seu ataque não é dos mais efetivos – e, em dados percentuais, converteu apenas 8% das finalizações), ou uma Argentina armada pelo Maradona na empolgação, um time que não tem nenhum equilíbrio e por isso mesmo tem encontrado dificuldades (não traduzidas pelos placares enganosos) para vencer os seus jogos.

Há uma tendência facilmente constatável na imprensa esportiva brasileira, hoje, de se criticar em demasia a seleção brasileira (não sem razão) e de se exaltar exageradamente outras seleções – seleções que, a meu ver, não são mais fortes que o time brasileiro, que apesar de tudo ainda é muito difícil de ser batido. Talvez querendo aparentar imparcialidade, talvez achando que está se fazendo um jornalismo mais sério caso não fique evidente que os locutores e comentaristas estão torcendo para o Brasil. Que absurdo tremendo um jornalista torcer pela seleção de seu país! E os arautos da imparcialidade que me perdoem, mas – como já escrevi em outro lugar – não existe esse negócio de objetividade fria e constante dos fatos. Mas, nesse áfã de tentar se parecer sério e não “favorecer” o Brasil nas análises, parece que todo mundo tomou o caminho oposto – e lá se vão todos elogiar e torcer pra Argentina.

Nada tenho contra quem comete a sandice de torcer pros hermanos, o problema é deles, quem quiser fazê-lo que o faça. O que me irrita é dizer que a seleção deles é melhor do que a nossa. Messi à parte (tudo bem que é uma ressalva grande a ser feita), somos mais time que eles. Não vejo tanta habilidade em Agüero, Higuain, Di Maria, Tévez… não mais do que vejo em – respectivamente, para compará-los com os brasileiros de posição similar – Nilmar, Robinho, Elano e Luís Fabiano. Peguem os melhores jogos dessa seleção argentina e experimentem compará-los às grandes atuações do Brasil: eles não têm nada similar às nossas grandes vitórias sobre Portugual, Itália, e – vejam só! – o inapelável 3×1 que lhes enfiamos em sua própria casa.

Aliás, já que nos lançamos nesse exercício de comparação, proponho a seguinte tarefa: analisar as campanhas de Brasil e Argentina na Copa até aqui; e, em seguida, comparar um a um os titulares.

Vamos lá: de início, já é preciso dizer que o Brasil caiu num grupo inegavelmente mais forte do que a Argentina. Fora a Coréia do Sul (mais habilidosa que sua parente do Norte, e por isso mesmo mais frágil, pois tende a se lançar mais ao ataque, expondo sua defesa), o grupo da Seleção era composto pelas contrapartes mais poderosas dos times do grupo argentino. Se os hermanos pegaram a Nigéria, seleção que já não tem a mesma habilidade dos anos 90, nós nos deparamos com a mais forte e badalada seleção africana – a Costa do Marfim de Drogba, Kalou, Eboué e Touré. Se a Argentina teve pela frente a fraca Grécia, que nunca fizera gols em Copas do Mundo, nós enfrentamos Portugal, que, independente de qualquer outra coisa, conta com um dos melhores jogadores do mundo.

Na primeira rodada, tanto nós quanto os hermanos pegamos adversários que jogaram fechadinhos na defesa; a grande diferença é que os nigerianos tinham um goleiro absurdo. Os dois times tiveram imensas dificuldades para furar a retranca. Entretanto, houve dois pontos fundamentais em que as duas atuações se distinguiram. Primeiro: Messi jogou muito, e Kaká esteve irreconhecível. Lionel, gênio absoluto, continuou com sua sina de ser pouco decisivo jogando pela seleção de seu país; mesmo em um grande dia, não conseguiu marcar, nem deixar seus companheiros em condição de fazê-lo. Segundo: os dois gols do Brasil surgiram de jogadas muitíssimo bem trabalhadas (prova disso é que trocas de passe semelhantes ocorreram em outros jogos), enquanto que o gol argentino surgiu de uma cabeçada meio esquisita após uma cobrança de escanteio. Aí já ficavam evidentes as deficiências táticas da Argentina, justamente num ponto em que o Brasil está bem servido.

Segunda rodada. Pegamos a forte seleção de Costa do Marfim; a Argentina joga com a habilidosa seleção coreana. Quem viu o jogo sabe: os hermanos tiveram, novamente, uma dificuldade absurda em penetrar na defesa coreana no primeiro tempo. Ambos os gols dessa etapa (como fora na primeira rodada) surgiram de cruzamentos para a área, algo estranho num time que todos definem como extremamente técnico. O primeiro, um cruzamento comum de Messi que foi empurrado para dentro do gol por um atacante (!) coreano. O segundo, um bom cruzamento de Maxi Rodriguez que resvalou algumas vezes na defesa coreana antes de sobrar para Higuaín, livre por falha da marcação da Coréia, empurrar para o gol. Uma rápida olhada nos melhores momentos comprova: fora a genial jogada individual de Messi, a Argentina nada mais criou no primeiro tempo (e quando digo “criar”, falo de jogadas trabalhadas, e não de chutes isolados de fora da área). Como na primeira rodada, a Argentina encontrava dificuldades para furar um ferrolho (não tão bem) trancado. E ainda tomou um gol em uma falha bisonha de sua fraquíssima defesa.

No segundo tempo, os coreanos, ingenuamente acreditando na vitória, se lançaram ao ataque, senha para a Argentina fazer a festa. Se, com quase todos os jogadores atrás da linha da bola, a defesa coreana não inspirava confiança, lançando-se ao ataque tornou-se presa fácil para os hermanos (ainda que um atacante coreano tenha perdido uma chance incrível de empatar o jogo no segundo tempo, cara a cara com o goleiro, após linda jogada do ataque da Coréia). Mas o jogo ainda estava minimamente equilibrado quando Messi fez jogada genial, driblou uns tantos coreanos, e chutou a gol. No rebote, Higuaín marcou o terceiro. “Finalmente Messi foi decisivo”, diriam alguns. Eu concordaria, não tivesse o gol sido marcado por um Higuaín em impedimento. Com 3×1, a Coréia desistiu do jogo. E aí ficou fácil: contra uma defesa vendida (adjetivo aqui usado de maneira figurada, diferente da literalidade com que o termo pode ser aplicado à defesa peruana de 78), Messi e Agüero fizeram grande jogada e Higuaín marcou mais um. Podem falar que forço a barra, mas acho difícil falar que aí Messi foi decisivo, dando o penúltimo passe para o quarto gol contra um time já vencido.

Kaká, ao contrário, foi muito mais cirúrgico contra a Costa do Marfim (e sua contribuição muito mais efetiva – falar que ele participou de dois gols do Brasil é abissalmente mais legítimo do que falar que Messi participou de três gols da Argentina). Primeiro, após boa tabela com Robinho, deixou Luís Fabiano na cara do gol pra fazer um golaço, abrindo o caminho para a vitória brasileira, no primeiro lance de perigo que o Brasil foi capaz de criar, após quase meia hora de dar murro em ponta de faca na defesa marfinense. (Aliás, os dois gols do Fabuloso foram incrivelmente mias fodas que os três insossos gols de Higuaín). O segundo gol de Luís Fabiano, tão legal quanto o segundo de Higuaín, foi (ao contrário do gol do Hermano) uma pintura: dois chapéus e uma bela conclusão a gol. Edson disse bem: gol de Pelé e Maradona. Balõezinhos ao melhor estilo do craque brasileiro, levada marota com a mão (ou, no caso, com o braço) comparável à do Pibe. Por fim, o terceiro gol brasileiro surgiu numa bela arrancada de Kaká pela esquerda, que deixou Elano na cara do gol para marcar. Novamente, jogada brasileira muito mais bem trabalhada que os dribles argentinos sobre a confusa defesa coreana. Drogba ainda marcou para a Costa do Marfim em falha da zaga brasileira, mas o placar já estava selado: Brasil 3×1.

Na terceira rodada, muitas seleções grandes estavam a perigo; Sobrenatural de Almeida esteve solto nos gramados sulafricanos, e França e Itália pularam fora. Mas a Seleção já estava classificada matematicamente; e os argentinos podiam ir às oitavas até com derrota. Uma Argetina cheia de reservas (mas com Messi, ainda sem marcar ou dar uma assistência válida) demorou uma hora e quinze minutos para fazer gol na defesa da Grécia. Pouco depois, Palermo fez mais um, em rebote de um chute de Messi – mas nem venham argumentar que isso foi uma assistência (se o Cartola não considera, eu também não considero). Um Brasil sem Kaká, Elano e Robinho nada criou no oxo contra Portugal, numa partida impecável de Lúcio. Vale mais uma vez lembrar que a seleção de Portugal é consideravelmente mais forte que a grega.

Por fim, chegamos às oitavas, e só manchetes simples dos jogos de ambas as seleções já demonstram o panorama: o Brasil aplicou um 3×0 inquestionável sobre o Chile, enquanto que a Argentina venceu o México por 3×1 tendo a seu favor um erro incrível de arbitragem. As seleções mexicana e chilena são parecidas: raçudas e habilidosas, contam com defesas frágeis mas com bons jogadores do meio pra frente. O Chile tem os ótimos Valdívia e Beausejour, e os bons Suazo, Sanchez e Paredes. O México tem o excelente Javier Hernandez, os ótimos Vela e Giovani dos Santos, e os bons Guardado e Salcido. Mas, justamente por criarem espaços na defesa, avaliava-se que Brasil e Argentina teriam jogos relativamente fáceis. O que foi verdade para o Brasil. Não foi verdade para a Argentina.

O México jogava bem, de igual pra igual, (alguns – eu entre eles – diriam inclusive que jogava melhor) até os 25 minutos do primeiro tempo. Messi enfia bola para Tévez, em ligeiro impedimento; o atacante feioso chuta em cima do goleiro. A bola rebate e volta para Messi, que novamente lança Tévez, em impedimento escandaloso, e o ex-corintiano marca. Amigos, todos aqui sabem a regra do impedimento: é necessário que haja sempre dois jogadores da equipe adversária entre um atleta e a linha de fundo. Corriqueiramente, falamos apenas no último homem da defesa, porque obviamente não levamos em conta o goleiro, sempre embaixo das traves. Pois bem, senhores: não havia absolutamente ninguém entre Tévez e o gol, nem goleiro nem zagueiro. Dois são necessários; nem um havia. Impedimento claríssimo que nem precisava do tira-teima que vazou no telão do estádio para ser verificado. Nem bem os mexicanos tinham se recuperado desse golpe duríssimo (afinal, o juiz, mesmo depois de constatar seu erro flagrante no telão do estádio, manteve sua marcação e validou o gol), o zagueiro Osório falha clamorosamente e entrega a bola de bandeja para Higuaín, com seu faro de artilheiro, driblar o goleiro e marcar o segundo. Desafortunado time mexicano, que era páreo duro para seu rival até duas falhas incompreensíveis (uma da arbitragem, outra de um zagueiro) entregarem a vitória de presente para os hermanos. Jogando como nunca… perdendo como sempre, mas com ressalvas.

O México não se entregava; continuou a jogar bem e a criar chances. No início do segundo tempo, Tévez desfere o golpe fatal: num lindíssio chute de fora da área, faz golaço e mata o jogo. O México ainda tenta – cria inúmeras oportunidades e, após boa troca de passes, Hernandez marca um golaço -, mas já é tarde. (E Messi, em jogada individual, novamente falha em ser decisivo: em sua única aparição na partida após a jogada do gol ilegal, dribla alguns adversários mexicanos e chuta para boa defesa do goleiro). Analisemos os três gols da Argentina, e novamente chegar-se-á à conclusão óbvia: os hermanos não conseguem criar jogadas, não conseguem sair da marcação a não ser nos (mais raros que o esperado) lances individuais. Aliás, pensemos nos gols que eles fizeram na Copa:

– quatro gols de bolas cruzadas na área (um contra a Nigéria + dois contra a Coréia [um deles contra] + um contra a Grécia);

– três gols de rebote (um em impedimento após boa jogada de Messi [Coréia] + um único advindo de uma boa jogada [Grécia] + um em clamoroso impedimento  [México]);

um gol em erro grosseiro da zaga adversária [México];

um gol em chute isolado de longa distância [México];

– e um único gol advindo de uma boa jogada do ataque argentino, o quarto gol contra a defesa escancarada da Coréia.

O Brasil, por outro lado… no jogo contra o Chile, o time marcou um gol de bola cruzada na área. Mas o Brasil assume essa como uma de suas armas; ao passo que, para o supostamente mágico selecionado argentino, jogar assim seria recorrer a um pragmatismo incompatível com o alegre Maradona… ou assim diriam os especialistas. Tudo bem: o segundo e o terceiro gol brasileiros foram jogadas feitas com trocas rápidas de passe e finalizações certeiras de nossos atacantes. Brasil jogou bem, mas não fez mais que a obrigação, dizem alguns: o Chile é freguês. Argentina toma sufoco do México, ganha o jogo com dois gols dados (um pela arbitragem, outro pela zaga mexicana) e é laureada como um seleção sensacional, capaz de mágicas inacalçáveis pelos onze do Brasil. Ao passo que nossa seleção aplica, sobre um time do mesmo nível do México, um três a zero incontestável, sem ajuda da arbitragem ou da zaga adversária, e continua sendo vista com desconfiança.

É pedir pra ser chutado que nem vira-lata. É complexo de inferioridade. É achar que a grama do vizinho é mais verde. Vejamos os gols do Brasil:

um gol de bola alçada na área após escanteio;

um gol em linda jogada individual (ainda que irregular) de Luís Fabiano – talvez o mais belo gol da Copa -;

– e nada menos que seis gols em trocas de passes do ataque brasileiro.

Discriminemos esses seis gols: o primeiro, em inversão de jogo de Felipe Melo, e passe de Elano para arrancada espetacular de Maicon, avançando verticalmente pela direita. O segundo, em bela enfiada de Robinho para Elano entrar em diagonal pela direita. O terceiro, numa tabela entre Luís Fabiano, Robinho e Kaká na entrada da área, que colocou Luís Fabiano na cara do gol. O quarto, numa arrancada de Kaká pela esquerda, que rolou para o meio da área para Elano – entrando em diagonal pela direita – marcar mais um. O quinto, numa troca de passes pelo lado esquerdo entre Robinho e Kaká, que num toque deixou Luís Fabiano livre para driblar o goleiro. O sexto, numa arrancada vertical de Ramires, avançando pelo meio e rolando para Robinho, no lado esquerdo da área, chutar no contra-pé do goleiro. Eles soam um pouquinho mais elaborados e bem tramados que os da Argentina, não?

Como se isso não bastasse, comparemos os times titulares de Argentina e Brasil, tomando por base as equipes que iniciaram as pastidas de oitavas-de-final (consideradas por todos as melhores partidas das duas seleções na Copa).

– Romero x Júlio César. Não há comparação; o goleiro brasileiro é o melhor do mundo na atualidade, enquanto que o argentino não passa nenhuma segurança.

– Otamendi x Maicon. Novamente, não há muito o que especular. Maicon é o melhor lateral-direito do mundo segundo muitos; bom defensiva e ofensivamente – Otamendi deixa a desejar nos dois quesitos.

– Burdisso x Lúcio. A zaga brasileira é a melhor do mundo; nem com Samuel a zaga argentina chega perto (e Samuel é melhor jogando ao lado desses três, na fortíssima zaga da Inter, do que sem eles). Lúcio foi um monstro nos dois últimos jogos; preciso no desarme, ainda sabe sair jogando e é elemento surpresa com ótimas subidas ao ataque. Quanto ao Burdisso… bem, basta dizer que ele saiu da Inter de Milão porque o Lúcio tomou o lugar dele.

– Demichelis x Juan. O brasileiro é seguro, experiente, ótimo no desarme (como Lúcio, faz pouquíssimas faltas) e no jogo aéreo. Demichelis foi o cara da falha bisonha no gol da Coréia do Sul.

– Heinze x Michel Bastos. Michel não tem jogado bem, sem atacar nem defender com eficiência – o lado esquerdo é o ponto fraco do Brasil. Heinze é razoavelmente seguro na defesa e bom no desarme. Vai pouco ao fundo; em compensação, já fez um gol na Copa.

– Mascherano x Gilberto Silva. Muitos discordarão. Mascherano talvez seja mais habilidoso; mas Gilberto é mais seguro e experiente – é campeão do mundo. É importante no esquema tático da seleção; pode não parecer, mas o jogo sempre gira por ele, bem mais que por Mascherano. Desarma mais que o argentino e é menos faltoso; portanto, muito mais eficaz.

– Máxi Rodriguez x Ramires. Nos jogos em que entrou, foi bem mais decisivo que o argentino. É mais leve e veloz, e tão habilidoso quanto Rodriguez. Em termos táticos, talvez funcione melhor também, por ser mais marcador que o outro (Se a comparação for com Felipe Melo, no entanto, a vantagem é argentina; apesar de deixar o time mais aberto, a habilidade de Máxi Rodriguez compensa. Ao passo que, com Felipe Melo, a maior “segurança” wue confere ao meio-campo não compensa a constante possibilidade de perdê-lo por expulsão).

– Di Maria x Daniel Alves. Aqui, a comparação é difícil. Daniel Alves é bem mais jogador, mas não tem rendido tão bem no meio quanto na lateral direita. É mais decisivo e habilidoso que Di Maria, além de chutar melhor. Mas o meia argentino tem atuado melhor, por jogar na sua posição de origem. Se a comparação for com Elano, no entanto, a coisa muda de figura. O ex-santista é fundamental no esquema de Dunga, e tem jogado muito, apesar de eu não gostar dele. Tem ótimo chute e excelente passe, além de boa visão de jogo. É um jogador inteligente e extremamente útil ao time. Seus números, em dois jogos, são melhores que os de Di Maria em quatro.

– Messi x Kaká. Aqui eu poderia forçar a barra e dizer que Kaká está jogando mais, só que aí não levariam minha análise a sério. Messi, gênio, é muito mais jogador; mas, como insisto em frisar, tem sido pouco decisivo. Apesar de driblar bastante e chutar muito a gol, é pouco efetivo; fora seus dois passes para gols em impedimento, só participou de gols contra equipes fracas quando o jogo estava definido (Coréia do Sul e Grécia). Kaká, apesar de andar apagado demais, foi cirúrgico e surgiu em jogos e momentos cruciais: deixou Luís Fabiano na cara a cara com o goleiro para abrir o placar num jogo truncado contra Costa do Marfim, e deu o gol para Elano quando o jogo estava 2×1 e os marfinenses eram melhores; novamente, deixou Luís Fabiano na cara do gol para ampliar o perigoso placar de 1×0 contra o Chile. Mas, tudo bem, concedo essa para os hermanos, só pelas jogadas fodas (ainda que ineficazes) de Messi.

– Tévez x Robinho. Empate. Tévez é mais raçudo, Robinho é mais habilidoso. Tévez fez dois gols (um em impedimento); Robinho fez um gol e deu uma assistência. Tévez resolveu o jogo contra o México; Robinho jogou demais contra a Coréia do Norte e foi importante contra o Chile.

– Higuaín x Luís Fabiano. Empate. Mesmo nunca tendo sido 100% a favor do Fabuloso, acho ele até mais jogador que Higuaín. Mas, na Copa, apesar de o momento ser bom para os dois, o Higuaín fez mais gols (4×3), e isso é o que importa pra um atacante (se em um dos gols Higuaín estava impedido, Luís Fabiano levou a bola com o braço). Os gols de Luís Fabiano foram, em geral, mais difíceis e plásticos; os de Higuaín foram de mais oportunismo. Nessa salada, acho que os dois se equivalem no momento.

– Maradona x Dunga. Maradona é cinqüenta e três milhões de vezes mais carismático (ainda que eu não goste tanto dele). Dunga é um babaca escroto e eu odeio esse merda, mas ele inegavelmente montou um time muito mais equilibrado que Maradona. Na Copa, o Brasil vem jogando o suficiente para ganhar bem; e em todo o tempo de preparação, o trabalho de Dunga, sob o ponto de vista dos resultados (ah, a eficácia…), é irrepreensível. Enquanto que Maradona criou um time que, apesar de estar ganhando bem, não tem jogadas nem padrão tático.

– Resultado final: Brasil 7×3 Argentina. Se incluirmos as trocas (Felipe Melo e Elano no lugar de Ramires e Daniel Alves), o placar não se altera. Então vejamos: individualmente, jogador por jogador, o time do Brasil é mais forte que o da Argentina, mesmo que o senso comum prove o contrário. No conjunto, na organização tática, essa seleção brasileira é – sempre foi – reconhecidamente melhor que a argentina, que joga espalhada demais e depende em demasia de jogadas individuais (o Brasil, por mais que dependa muito do talento de Kaká, tem outras opções , que só não surgiram contra Portugal porque – e as pessoas não têm lembrado disso – também estávamos sem Elano e Robinho).

A conclusão surge inevitável, irreprensível, inapelável: o brasileiro não leva fé no seu país. O brasileiro vê em demasia no outro o que não consegue enxergar de maneira alguma em si mesmo. O brasileiro gosta de ser chutado – ainda mais: ele mesmo é o primeiro a levantar o pé para acertar o traseiro de um compatriota! O primeiro a cuspir no prato que comeu! O primeiro a proferir absurdos em favor de outros, que os próprios talvez não aceitariam! Diga lá fora que o Brasil não é favorito à Copa, e lhe responderão: “estás louco!”.

Nelson disse melhor:

“Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. (…)Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: – e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: – porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.

Eu vos digo: – o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender (…). Uma vez que se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: – para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.”

– Você fez a coisa certa. Esse é um grande dia pra você. Foi uma decisão difícil, eu sei. Mas nós, os intelectuais – porque eu te considero um -, temos o dever de permanecer racionais até o mais amargo fim. O mundo já está lotado de coisas supérfluas – não há sentido em adicionar mais uma na multidão.
Afinal, perder dinheiro faz parte do trabalho de um produtor… parabéns, não havia alternativa. Ele teve o que mereceu por embarcar tão levianamente em tão frívola aventura. Não tenha receio ou arrependimento. É melhor destruir do que criar, quando se falha em criar aquilo que é mais essencial.
Além disso, há realmente algo que seja tão claro e justo a ponto de ter o direito de existir? Um filme ruim é simplesmente um problema financeiro para ele. Mas para você poderia ter sido o fim. É melhor deixar as coisas irem embora e jogar sal sobre elas como os antigos faziam para purificar os campos de batalha… afinal, tudo o que precisamos é um pouco de higiene, limpeza, desinfetante… porque estamos sufocados por palavras, imagens e sons que não têm razão de ser… que vêm de lugar nenhum e vão para lugar nenhum. Um artista que seja realmente digno do nome deveria ter de realizar um único ato de lealdade: restringir-se ao silêncio. Lembra-se da eulogia de Mallarmé à página branca…?…

– Nós estamos prontos para começar!… Todas as minhas felicitações!

– … se não se pode ter tudo, nada é a verdadeira perfeição. Perdoe-me essas citações, mas nós críticos fazemos o que podemos. Nossa verdadeira missão é limpar os inúmeros abortos que obscenamente tentam invadir o mundo. E você gostaria de deixar atrás de si nada menos que um filme inteiro, como um homem coxo deixaria impressas suas pegadas deformadas? Que presunção monstruosa crer que os outros se beneficiariam de alguma forma do esquálido catálogo dos seus erros. Por que você deveria se importar em costurar os retalhos da sua vida, as vagas memórias e os rostos das pessoas que você nunca foi capaz de amar?

– “O que é esse clarão de alegria que está me dando nova vida? Por favor me perdoem, doces criaturas. Eu não me dei conta, eu não sabia… Como é certo aceitá-los, amá-los. E como é simples! Luisa, eu sinto como se tivessem me libertado. Tudo parece lindo, tudo tem um sentido, tudo é verdade. Ah, como eu queria poder explicar…! Mas eu não posso… e tudo está voltando ao que era. Tudo está confuso novamente… mas essa confusão sou eu. Como eu sou, não como eu gostaria de ser. E, agora, não tenho medo de contar a verdade, o que eu não sei, o que eu procuro. Só assim posso me sentir vivo e olhar nos seus olhos fiéis sem sentir vergonha. É uma festa, a vida. Vivamo-la juntos. Não posso dizer mais nada, para você ou para outros. Aceite-me como eu sou, se puder. É só assim que nos podemos tentar encontrar um ao outro”.

– Não sei se você está certo. Mas posso tentar, se você me ajudar.

Sim, é uma comparação hiperbólica e aparentemente absurda. Mas não, não é paródica. Eu realmente acredito na semelhança entre os dois. Não me parece uma associação infundada. Porque ambos realmente me atingem de maneira parecida, as duas cenas me causam reação similar (sim, sim – as lágrimas).

Claro, o final de Fellini é perfeito, genial, obra-prima. E o de Lost tem algo de brega, de over, de desajeitado, de confuso. “Mas” – foi o próprio Fellini quem o disse, e eu não poderia pôr de outra maneira – “essa confusão sou eu”.

The Dead

“The air of the room chilled his shoulders. He stretched himself cautiously along under the sheets and lay down beside his wife. One by one, they were all becoming shades. Better pass boldly into that other world, in the full glory of some passion, than fade and wither dismally with age. He thought of how she who lay beside him had locked in her heart for so many years that image of her lover’s eyes when he had told her that he did not wish to live.

Generous tears filled Gabriel’s eyes. He had never felt like that himself towards any woman, but he knew that such a feeling must be love. The tears gathered more thickly in his eyes and in the partial darkness he imagined he saw the form of a young man standing under a dripping tree. Other forms were near. His soul had approached that region where dwell the vast hosts of the dead. He was conscious of, but could not apprehend, their wayward and flickering existence. His own identity was fading out into a grey impalpable world: the solid world itself which these dead had one time reared and lived in, was dissolving and dwindling.

A few light taps upon the pane made him turn to the window. It had begun to snow again. He watched sleeply the flakes, silver and dark, falling obliquely against the lamplight. The time had come for him to set out on his journey westward. Yes, the newspapers were right: snow was general all over Ireland. It was falling on every part of the dark central plain, on the treeless hills, falling softly upon the Bog of Allen and, farther westward, softly falling into the dark mutinous Shannon waves. It was falling, too, upon every part of the lonely churchyard on the hill where Michael Furey lay buried. It lay thickly drifted on the crooked crosses and headstones, on the spears of the little gate, on the barren thorns. His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead”.

The Dead, James Joyce.

Sobre The End.

“De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro”.

O encontro marcado, de Fernando Sabino.