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Archive for novembro \18\-03:00 2010

Em algum lugar, uma Ferrari corre por uma estrada e some momentaneamente de vista enquanto faz uma curva. Ressurge em velocidade, avançando pela pista, só para sair de quadro segundos depois. Ainda ouvimos por alguns segundos o barulho potente do seu motor ir sumindo na distância.

Mas o avanço é apenas ilusório: pouco antes de sumir completamente, o ronco do motor volta a aumentar, e a Ferrari entra em quadro novamente, repetindo seu percurso. Faz a curva e mais uma vez vai embora. O carro faz essa volta três vezes antes de frear repentinamente. Após breve pausa, um homem sai do veículo e olha em volta.

 

Stephen Dorff, a.k.a. NOT-Bill-Murray, & Elle Fanning, a.k.a. Better-than-her-sister

O plano inicial de Somewhere é a síntese mais perfeita (porque simples – ou ainda, simplista) do mais recente filme de Sofia Coppola – chamá-lo de “novo” seria assumir que há algo nesse filme que o diferencia do trabalho anterior da cineasta, o que não me parece verdade. E é justamente nessa característica que enxergo o grande problema do filme. A análise mais simplista, a metáfora mais batida, a maneira mais preguiçosa de caracterizar o filme é também a mais precisa: Somewhere dá voltas e voltas e não sai do lugar.

Há duas questões que decorrem dessa afirmação. A primeira é a de que não há, a priori, nenhum problema intrínseco nessa maneira de se abordar as coisas. Recusar a tradicionalidade de uma dramaturgia de “superação”, de uma trajetória de personagem na qual o protagonista encontra dificuldades e sai dessa jornada como uma pessoa melhor do que quando começou – tudo isso pode ser bastante interessante, e o que não falta são exemplos de filmes fantásticos que partam dessa premissa cíclica (de Van Sant a Nolan). A própria Sofia Coppola fez, a partir dessa idéia, o bem mais interessante e bem-sucedido Encontros e Desencontros. Acontece que, nese Somewhere, o “vazio existencial do ser humano” ou qualquer baboseira do tipo só parece interessar a diretora como um fim em si mesmo; quero dizer, ela filma o tédio e a solidão só pra sublinhar o óbvio: que eles são entediantes e solitários. Como disse um amigo, essa história de que “o filme é de plástico porque a vida do cara é de plástico” não cola. Sendo, me parece, um arremedo mal-feito de Encontros e Desencontros, Somewhere quase nunca consegue infundir um senso de melancolia, nem de carinho, nem de doçura nesse mundo superficial que filma, seguindo à risca o clichê associado às estrelas de Hollywood.

O segundo ponto me parece ainda mais grave: Sofia Coppola parece de fato acreditar que está fazendo algo mais, que desse vazio está conseguindo extrair algum tipo de lição moral. O final do filme não passa de uma “tomada de consciência” do protagonista, que resolve deixar sua vida fútil pra trás e sair para enfrentar o mundo desconhecido. Soa brega, metáfora rasteira, e realmente assim o é. Que outra coisa enxergar no plano final, em que o protagonista abandona o carro no meio da estrada e sai andando sozinho – ainda mais considerando que o plano inicial é aquele que descrevi lá em cima?

Há um par de críticas antagônicas na Contracampo cujas leituras se aproximam da que fiz. Calac Nogueira reconhece a repetição de temas já abordados pela diretora, mas vê na “simplicidade” deste aqui algum interesse; crê que Somewhere “opera uma depuração formal deste sentimento (a melancolia), numa tentativa de torná-lo mais palpável por meio de uma dinâmica rigorosa de cena e de montagem, como se estivéssemos diante de uma exposição temática (ainda que também narrativa) de quadros”. E que, por causa dessa operação, o filme não é um passo atrás, não trilha novamente terreno já pisado pela diretora – mas que, ao contrário, consegue ir ao essencial de um sentimento que já estava presente em seus outros filmes.

Entretanto, não me parece que Coppola tenha ido à essência de nada, mas ficado apenas na superfície – ela, justamente, não consegue infundir no mormaço do cara a melancolia mais profunda que ali parece existir. E mais: essa tentativa de tornar a melancolia mais palpável por uma mise-en-scene rigorosa e o caralho a quatro soou, pra mim, como um exercício (vazio) de estilo. A mim não interessa que uma diretora, por mais talentosa que seja, use sua capacidade de encenação, posicionamento de câmera e uso da música pra plastificar aquilo que poderia ser interessante. Dito em termos simples, quase chulos: não vejo interesse num filme que consegue tirar a pungência de ‘My Hero’, do Foo Fighters, e a sensualidade de duas gêmeas loiras gostosas fazendo pole-dancing ao juntar os dois pra produzir um efeito ridículo. A mão pesou na caricaturização e qualquer senso de melancolia se perdeu. Esse procedimento funciona na gravação do comercial do Bill Murray porque, porra, it’s Bill fuckin’ Murray, cujo rosto transmite toda a melancolia do mundo quando quer. Por mais que Stephen Dorff não seja mau ator, ele não consegue segurar a cena, e o que era pra ser melancólico se torna apenas caricato.

Leonardo Levis faz uma crítica que se alinha mais com o que eu senti no filme: “Coppola faz um filme para dizer não às máscaras que compõem seu mundo, mas não sabe filmar outra coisa do que essas próprias máscaras”. E se há algo que me incomoda profundamente em Somewhere é isso: sinto nele um desejo profundo de tentar entender o que há por trás dessas máscaras, mas nunca sai da superfície. O par de palavras-chave é esse mesmo: um desejo de profundidade, num filme que nunca consegue deixar de ser superficial.

"There is a time when we all fail..."

Acho que aqui vale falar um pouco das minhas impressões com os filmes anteriores da cineasta. Gosto demais d’As Virgens Suicidas, justamente por ser um filme que reconhece sua incapacidade de entender seus personagens de maneira mais profunda. Desde o início, as garotas são enigmas que nós não conseguimos decifrar – e aqui o uso do pronome é preciso, porque é com os garotos que as admiram que se alinha o ponto de vista do filme. Nós só temos pequenos indícios, peças que não são suficientes pra montar o quebra-cabeça (não à toa citei o Van Sant lá em cima, já que seu Elefante me parece um dos melhores filmes a trabalhar essa idéia). A força de As Virgens Suicidas está em perceber que há algo – aí sim – profundamente hipnótico e belo em enigmas desse tipo.

Encontros e Desencontros é um filme-problema pra mim, porque sempre senti que deveria gostar mais dele do que gosto. Aliás, sempre quis gostar mais dele do que gosto. Em retrospecto, sempre achei que o filme fosse melhor do que na minha reação inicial a ele. Mas, nas duas vezes em que voltei a vê-lo, tive aquele sentimento de underwhelming; como se ainda faltasse algo pra que ele realmente me atingisse com pungência. Ainda assim, gosto de diversos momentos, e realmente sinto que há uma profundidade no relacionamento entre Bill Murray e Scarlett Johansson. Mérito dos atores, talvez, que são profundamente carismáticos; de qualquer forma, existe ali algo impalpável que foge a uma definição precisa (isso vindo de alguém que viu no famoso sussurro do Bill Murray no ouvido da Scarlett a mão pesada da diretora – um momento absolutamente genial e sensível, é verdade, mas ainda assim reconheço essa genialidade de maneira mais analítica que sensorial). E mesmo ali há o reconhecimento de que algo foge da esfera do definível – ou do representável, sei lá. Fato é que o filme não tenta, no final das contas, fingir que compreendeu o que os personagens são e sentem; ele não pensa que “desvendou o mistério”. E também não há, nisso, a busca de uma redenção propriamente dita – o filme é o encontro dos dois, e só; em nenhum momento se coloca isso como uma questão moral, como algo que apenas serve de escada para os personagens se tornarem “pessoas melhores” ou o que quer que seja – e, pra mim, isso é um grande mérito. [nota cerca de um mês depois de ter escrito o texto original: esses dias peguei o final de Encontros e Desencontros passando em algum canal da net, e pela primeira vez aquele sussurro final e o plano do Bill Murray no taxi me pegaram de uma maneira mais pungente. Talvez por ter visto a cena meio no susto, meio na surpresa; talvez justamente por vê-la descolada do resto, por si mesma. Ainda que essa sensação de descolamento, de algo separado do resto e fechado em si mesmo, esteja tentativamente presente em todo o filme, ela nunca se fez tão presente nas vezes em que o vi em toda a sua duração].

Não vi Maria Antonieta, mas só por se configurar como algum tipo de recriação de uma personagem histórica – e, ao que me parece, sem nenhuma tentativa de fidelidade a como “ela realmente era” ou qualquer coisa assim -, já parece fugir dessa tentativa de desvendar “a melancolia profunda”, de tentar dar conta de tudo o que mostra. Em Somewhere, percebe-se a tentativa de criação de um efeito cumulativo das cenas de tédio do protagonista; ainda que elas sejam razoavelmente desconectadas de uma das outras e de uma narrativa maior (que mal-e-mal se estrutura em torno do tempo que Dorff passa com sua filha, interpretada por Elle Fanning, irmã da Dakota), a impressão que fica é que esses momentos deveriam impulsionar a mudança de vida do personagem. E ainda assim a resolução final soa um tanto fora de lugar, como que forçada por uma necessidade de Coppola de dar esse desfecho ao personagem – e a si mesma, quem sabe; talvez seja ela quem queira escapar desse universo fechado e artificial. Simplesmente soa falso demais. E, digo outra vez, se era essa a intenção – fazer um filme de plástico sobre uma vida de plástico, no qual até mesmo a conclusão redentora não resulta de uma motivação mais profunda; Calac Nogueira fala de “uma imagem desencantada, direta, sem fundo, sem mistério – e melancólica exatamente por esta falta de mistério” -… bom, é o que eu digo: não vejo interesse algum nisso.

O que a mim fica claro é a extrema habilidade de Coppola em compor pequenos momentos, criar esquetes, fazer cenas que se sustentam por si mesmas. Isso fica mais claro, aqui, nos momentos que envolvem Elle Fanning – num filme tão morto, é impressionante como a garota consegue trazer alguma vivacidade à tela. Não sei se é a força do carisma da menina ou se é fruto desse rigor e capacidade de Sofia Coppola de criar pequenos momentos de encantamento em meio ao mormaço – mas é ponto pacífico que pelo menos em alguns pontos ela acertou a mão – como já o disseram os críticos da Contracampo e Fábio Andrade, na Cinética. Aliás, eu já tinha escrito esse texto algum tempo antes de a crítica dele ser publicada na Cinética, e pode parecer impressionante como inadvertidamente nossos parágrafos iniciais são parecidos. Mas não há nada de surpreendente nisso: afinal, como eu já disse, essa é a maneira mais óbvia e mais precisa de definir o filme. Apesar de eu discordar do tom elogioso da crítica, Fábio faz uma observação bastante precisa sobre um dos momentos luminosos de Elle Fanning: “a paixão que observava Scarlett Johansson de peruca rosa, encarnando Chrissie Hynde na

"Look how all the kids have grown, oh / We have changed but we're still the same"

interpretação de “Brass in Pocket”, e o amor que aflora com um número de patinação de Elle Fanning (que nos lembra o formato circular do primeiro plano e que é predominante em todo o filme, mas que aqui esbanja uma graciosidade que inexiste na dureza do Porsche)”. Momentos como esse, ao som de ‘Cool’, de Gwen Stefani, e as brincadeiras na piscina entre a garota e o pai, embalados por ‘I’ll Try Anything Once’ (versão minimalista do Strokes para a sua ‘You Only Live Once’), demonstram que Coppola seria mais talentosa como diretora de videoclipes. Ok, ok, mais uma vez, esse pode ser o ponto da coisa toda, mas não é um ponto muito interessante de se fazer.

Em Encontros e Desencontros, havia a vontade de se embutir mistério e peso na imagem, dar-lhe um relevo, infundir sentimento – algo por trás daquilo que está diante dos nossos olhos. Criava-se, então, um parêntese simples e intimista na vida monótona e melancólica daqueles personagens –  e a melancolia se fazia mais presente justamente porque o final do filme, por mais bonito que fosse, já estava descompassado com os personagens, que à força tinham que deixar aquilo para trás. Colocado nos termos desse último filme, Encontros e Desencontros se dá no espaço de tempo em que o cara sai do carro e olha em volta – vê a paisagem, respira ar puro, põe os pés no chão, sente o peso das coisas (os sentimentos bons e ruins) –; mas no fim das contas ele tem que voltar ao carro e retomar o percurso. Enquanto que Somewhere, ao contrário, o tempo todo está a subtrair esse peso, esse mistério, esse ar-puro/pé-no-chão da imagem; quer apenas o ar abafado e artificial dos interiores de hotel, a tal imagem sem mistérios. Se em Encontros e Desencontros intuíamos o artificialismo quando confrontávamos a vida tediosa dos personagens com aqueles momentos intensos que eles compartilhavam entre si, em Somewhere somos apresentados de frente a esse artificialismo para mal-e-mal intuir esse mistério e essa beleza além do quadro. No final do filme, um tanto quanto forçadamente, Stephen Dorff vai em direção a essa vida mais, sei lá, “significativa”, e nós somos deixados com o artificialismo. Não tem graça, Coppola; não quero só o videoclipe, quero os momentos reais de força e beleza. Analiticamente toda esse procedimento de deixar a beleza e a profundidade fora de quadro é até interessante, mas como filme não tem nenhuma força, desculpa. Não é exatamente que eu queira ver o que acontece quando o cara deixa o carro pra trás; não é isso. As voltas na pista podem ser uma coisa legal; mas se você vai ficar dando voltas e voltas ao redor do próprio umbigo, primeiro se certifique de que o seu umbigo é minimamente interessante. O seu já foi, Coppola, mas não me parece ser mais.

***

E o meu também não deve ser lá muito digno de nota, mas façamos mais uma tentativa. One more time, então, with feeling.

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