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Posts Tagged ‘destino’

– Você fez a coisa certa. Esse é um grande dia pra você. Foi uma decisão difícil, eu sei. Mas nós, os intelectuais – porque eu te considero um -, temos o dever de permanecer racionais até o mais amargo fim. O mundo já está lotado de coisas supérfluas – não há sentido em adicionar mais uma na multidão.
Afinal, perder dinheiro faz parte do trabalho de um produtor… parabéns, não havia alternativa. Ele teve o que mereceu por embarcar tão levianamente em tão frívola aventura. Não tenha receio ou arrependimento. É melhor destruir do que criar, quando se falha em criar aquilo que é mais essencial.
Além disso, há realmente algo que seja tão claro e justo a ponto de ter o direito de existir? Um filme ruim é simplesmente um problema financeiro para ele. Mas para você poderia ter sido o fim. É melhor deixar as coisas irem embora e jogar sal sobre elas como os antigos faziam para purificar os campos de batalha… afinal, tudo o que precisamos é um pouco de higiene, limpeza, desinfetante… porque estamos sufocados por palavras, imagens e sons que não têm razão de ser… que vêm de lugar nenhum e vão para lugar nenhum. Um artista que seja realmente digno do nome deveria ter de realizar um único ato de lealdade: restringir-se ao silêncio. Lembra-se da eulogia de Mallarmé à página branca…?…

– Nós estamos prontos para começar!… Todas as minhas felicitações!

– … se não se pode ter tudo, nada é a verdadeira perfeição. Perdoe-me essas citações, mas nós críticos fazemos o que podemos. Nossa verdadeira missão é limpar os inúmeros abortos que obscenamente tentam invadir o mundo. E você gostaria de deixar atrás de si nada menos que um filme inteiro, como um homem coxo deixaria impressas suas pegadas deformadas? Que presunção monstruosa crer que os outros se beneficiariam de alguma forma do esquálido catálogo dos seus erros. Por que você deveria se importar em costurar os retalhos da sua vida, as vagas memórias e os rostos das pessoas que você nunca foi capaz de amar?

– “O que é esse clarão de alegria que está me dando nova vida? Por favor me perdoem, doces criaturas. Eu não me dei conta, eu não sabia… Como é certo aceitá-los, amá-los. E como é simples! Luisa, eu sinto como se tivessem me libertado. Tudo parece lindo, tudo tem um sentido, tudo é verdade. Ah, como eu queria poder explicar…! Mas eu não posso… e tudo está voltando ao que era. Tudo está confuso novamente… mas essa confusão sou eu. Como eu sou, não como eu gostaria de ser. E, agora, não tenho medo de contar a verdade, o que eu não sei, o que eu procuro. Só assim posso me sentir vivo e olhar nos seus olhos fiéis sem sentir vergonha. É uma festa, a vida. Vivamo-la juntos. Não posso dizer mais nada, para você ou para outros. Aceite-me como eu sou, se puder. É só assim que nos podemos tentar encontrar um ao outro”.

– Não sei se você está certo. Mas posso tentar, se você me ajudar.

Sim, é uma comparação hiperbólica e aparentemente absurda. Mas não, não é paródica. Eu realmente acredito na semelhança entre os dois. Não me parece uma associação infundada. Porque ambos realmente me atingem de maneira parecida, as duas cenas me causam reação similar (sim, sim – as lágrimas).

Claro, o final de Fellini é perfeito, genial, obra-prima. E o de Lost tem algo de brega, de over, de desajeitado, de confuso. “Mas” – foi o próprio Fellini quem o disse, e eu não poderia pôr de outra maneira – “essa confusão sou eu”.

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“De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro”.

O encontro marcado, de Fernando Sabino.

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Lost é uma das séries de televisão mais interessantes dos últimos anos, e talvez a que melhor brinque com as convenções estruturais e estilísticas do meio. O seriado se reinventa a cada temporada, ampliando seu escopo narrativo e temático de uma maneira que não se esperaria em produtos de massa americanos. Ainda que se possa discutir a afirmação de que, na última década, a dramaturgia televisiva dos Estados Unidos foi mais original e revigorante que o cinema de Hollywood, Lost sem dúvida é um indício de que não se pode questionar a qualidade das séries americanas.

Ironicamente, apesar de isso aqui ser um blog, apenas tangenciarei um dos pontos mais marcantes da interação de Lost com o público, que é a maneira como a série se expande na internet, através de A.R.G.’s (Alternative Reality Games), virais, podcasts e afins; meu foco aqui é analisar o produto em si mesmo, destrichando os interessantes procedimentos audiovisuais utilizados pela série. Por mais interessantes que sejam as ramificações do seriado na internet, elas fazem parte de uma outra discussão, na qual não pretendo me aprofundar (não ainda). Também não vou teorizar muito sobre a mitologia e os mistérios de Lost, nem nos textos sobre as temporadas, nem em críticas individuais dos episódios.

Aqui, portanto, falarei apenas de como os temas da série são articulados tanto na estrutura dramática quanto audiovidual dos episódios.

1) Da organização dos fragmentos.

A principal operação de Lost se baseia naquilo que não é mostrado, naquilo que a imagem apenas sugere, mas nunca explicita. O suspense aqui é elevado ao paroxismo, e a série inteira é um jogo de situações que não se resolvem, mistérios que se multiplicam em si mesmos, tramas paralelas que se intercalam e se interconectam e não levam a lugar algum, perguntas cujas respostas apenas levantam mais dúvidas.

Eles vêem o reflexo do piloto na água...

... e apenas depois descobrem o seu corpo na árvore.

É aí que o título da série, ainda que por demais óbvio, faz sentido na sua dupla camada de atuação: ela se interessa tanto pelos personagens – perdidos literal e metaforicamente – quanto pelo jogo narrativo que brinca com estruturas e convenções, juntando fragmentos auto-suficientes que, apesar disso, são regidos por uma força maior – fazendo o espectador ficar, ham-ham, “perdido”.

Vejamos:

Há, é claro, a intenção de contar as histórias daquelas pessoas, ver as rupturas e os engessamentos provocados por uma situação-limite (ou: como o desastre fê-las repensar suas maneiras de se portar no mundo ao mesmo tempo que traz à torna e fortalece suas mais arraigadas obsessões), e.g., Jack extrapola sua necessidade de consertar coisas, ao mesmo tempo em que questiona sua capacidade de liderar; Locke se torna cada vez mais um “homem de fé”, mas vêessa fé ser colocada à prova de maneira cada vez mais decisiva. E assim por diante.

Uma luz surgiu quando Locke estava perdendo a fé na Ilha.

A própria estrutura narrativa que Lost segue é prova do seu interesse nas histórias pessoais: episódios centrados em um personagem específico, intercalando a trama presente dos acontecimentos na ilha com flashbacks investigando causas, motivos, razões para a maneira de ser daquele personagem (numa das muitas rimas entre o “núcleo estrutural” e o “núcleo dramático“, mostrando que tentar dividir forma e conteúdo é realmente sem sentido).

Temos, portanto, personagens em suspensão, cuja única preocupação é do tempo presente – sobreviver mais um dia, até a chegada de um possível, mas cada vez mais improvável, resgate -, pelo menos nessa primeira temporada. E, no entanto, essa linha narrativa do presente é a única que tem uma duração propriamente dita, que estabelece relações temporais, que se conecta episódio a episódio.

Por outro lado, há uma tentativa de dar um fundamento, uma base a esses personagens que estão suspensos num tempo presente aparentemente sem amarras (como eu disse, “causas, motivos, razões para a maneira de ser daquele personagem”). Porque, no que seria uma situação de superfícies, do limite, nervos à flor da pele, na qual todas as preocupações características da vida moderna deveriam sumir, inevitavelmente emergem questões mais profundas, traumas e lembranças que os personagens não podem reprimir.

E é aí que surge a interessante dialética das instâncias temporais em Lost. Porque é o tempo presente que tem um encadeamento de causalidade, é a trama da ilha que precisa se reportar diretamente ao que é visto na semana anterior. Ao passo que os flashbacks são mais auto-suficientes, fechados em si mesmos – pelo menos nesse começo, quando ainda não temos mais nenhuma informação sobre esses personagens. À medida que nos aproximamos do final da temporada, há personagens que chegam a receber segundos e até terceiros flashbacks – mas nem sempre é possível relacioná-los uns com os outros de maneira precisa. Eles não são exatamente completementares, e podem se contradizer (se não em termos gerais, ao menos nos detalhes).

[obs.: mas isso vai gradativamente diminuindo, causando o grande problema da série na segunda e na terceira temporadas, que é o fato de o esquema narrativo dos flashbacks se tornar redundante: os roteiristas ficam presos ao dispositivo, que passa a mostrar tramas que apenas reiteram aquilo que já sabíamos sobre os personagens, que em alguns momentos acabam se tornando caricaturas de si mesmos]

Ou seja: em Lost, a situação-limite que se apresenta catalisa uma miríade de memórias de acontecimentos, que se relacionam mais com o presente do que entre si. Melhor dizendo: são essas memórias (o passado dos personagens, dir-se-ia sua essência) que forçam caminho e vêm à superfície nesse primeiro contato com o desastre.

Jack tem visões de seu pai andando na ilha.

O movimento aqui ainda é do passado para o presente; como em White Rabbit, primeiro episódio centrado exclusivamente em Jack, é o flashback que organiza o que acontece na ilha – apenas tomando como base a vida pregressa de Jack podemos entender suas reações ao que o cerca. Ao passo que, nas temporadas seguintes, esse movimento começa a se inverter sutilmente.

É como se aquela ilha fosse o ápice, e ali as pessoas vivem o resumo de suas vidas, uma versão miniaturizada dos obstáculos que encontraram. Jack precisa confrontar o fantasma (literal e metafórico) de seu pai, ao mesmo tempo em que sua necessidade de consertar as pessoas (“to fix things“) é trazida à tona a todo o momento. Kate se vê obrigada a manter-se em um único lugar, quando desde sempre sua inclinação natural foi fugir (o que é até salientado de maneira um pouco excessiva nessa primeira temporada especificamente, mas também na série toda de maneira geral, com poucas

James Ford lê a carta que escreveu quando criança para o verdadeiro Sawyer.

exceções). Locke finalmente pode realizar seu walkabout, mas ele precisa renovar sua fé quase diariamente pra que isso seja possível. Sawyer tem a chance de escolher se ele será realmente Sawyer, o homem que perseguia, ou se ficará livre para ser James Ford. E assim por diante.

Dessa maneira, fica estabelecido o principal procedimento de Lost: aquele que de certa forma reúne os fragmentos em suspensão sob um poder organizador que tenta relacionar elementos aparentemente díspares (e há de se notar que isso se articula com o grande tema da série, que é a dicotomia entre livre-arbítrio e destino).

As peças do jogo.

2) Os personagens não podem ser meros peões.

Nessa primeira temporada, contudo, por mais que esse tema esteja presente no subtexto, ele raramente se torna latente (“That’s why the Red Sox will never win the damn series” é o mote do pai de Jack). É o começo de tudo, e essa força maior ainda precisa ficar sob a superfície. O que interessa, no início da série, é estabelecer os personagens, fazê-los se encontrarem e desse encontro fazer surgir uma possibilidade de redenção. No meio de todas as inventividades narrativas e estruturais, é preciso ter alguns dos mais clássicos valores – nós temos de nos importar com os personagens. E, para além da obviedade de fazer o espectador entrar na história – que não se sustentará sozinha com base apenas em mistérios e cliffhangers , pois é preciso que nos importemos com aquele que está pendurado no precipício -, há uma importância temática e conceitual para isso.

As regras desse jogo vão ficando mais claras nas temporadas seguintes, mas é preciso que os personagens não sejam meras peças em um tabuleiro de xadrez. Não apenas porque ninguém vai se importar com os peões, mas porque é preciso que eles tenham alguma auto-suficiência. É preciso que haja base para seus atos, motivos para as suas escolhas – eles pensam e agem, calcados em alguma noção de livre-arbítrio. Isso é fundamental para a dialética da série; não há como ela funcionar se os personagens forem arquetípicos e rasos, porque aí a balança vai pender apenas para um lado – o lado da força maior totalizante, a idéia de predestinação. E é preciso que a outra força motriz também seja relevante – a força das multiplicidades, o livre-arbítrio, o poder das escolhas. Esses fragmentos precisam funcionar como conjunto, mas também precisam ter autonomia. Caso contrário, tudo se torna menos que um jogo, é apenas um colocar de peças no quebra-cabeças por agentes maiores que vêem a figura na caixa, ao passo que nós não temos idéia de que imagem o quebra-cabeças vai formar – e nem nos importamos, porque as peças não nos interessam individualmente.

Relação quase incestuosa entre os irmãos adotivos Shannon e Boone

Sayid envergonha-se por ter torturado Sawyer.

Assim, Lost se esforça em sua primeira temporada para que entendamos e nos importemos com cada uma dessas peças, apenas sugerindo que tipo de figura elas vão formar quando colocadas em seu devido lugar.

3) A construção da imagem em Lost.

Essa sugestão é um dos pontos mais interessantes em Lost, porque diz respeito a uma maneira de encarar a ficção que não se vê muito hoje em dia, principalmente em Hollywood. A preocupação está em construir uma imagem (peças soltas e fragmentadas se interconectando), mais do que exatamente mostrar uma imagem. Desde o primeiro plano da série (um close-up de um olho se abrindo) essa preocupação – mais metonímica do que metafórica – fica evidente.

Essa primeira cena é um exemplo perfeito de como Lost opera. Após o close-up no olho de Jack, há o contraplano das árvores acima dele, se movendo ao vento.

Toda a dialética da série já está aí: homem vs. natureza, indivíduo vs. ambiente que o rodeia, específico vs. geral, etc. etc. Em seguida, um plano fechado no rosto de Jack, que aos poucos se afasta para revelá-lo deitado sobre o chão da floresta – mais uma vez, a operação clássica de Lost: partir do detalhe, do específico, para chegar ao universal, ao todo.

Um cachorro que ronda, um tênis pendurado na árvore – pequenos elementos de um quase surrealismo, uma estranheza de um mundo fantástico que apenas se insinua. Jack corre até a praia. Gritos, barulhos de metal, indícios de tragédia – tudo fora de campo. Apenas o som se sobrepondo à imagem pacífica de Jack numa praia paradisíaca. Jack avança, e apenas aí irrompem na tela as imagens de destroços, de gente gritando, da tragédia anunciada fora da tela. Destroços de um avião que, mais adiante, estará reconstruído e inteiro no primeiro flashback (e ainda assim, mesmo que o saibamos inteiro, não o vemos todo: enxergamos apenas sua asa pela janela de Jack).

Novamente, o procedimento clássico de Lost: reconstruir, a partir de fragmentos (de destroços), um todo; entretanto, é apenas a idéia, a noção de um todo, de um inteiro, pois a imagem permanece fragmentária e sugestiva.

Em toda a temporada (assim como em toda a série), essa idéia de “reconstrução” fica evidente. A própria maneira como os flashbacks nos são apresentados enfatizam isso. Eles se estruturam a partir de elementos vistos na ilha, no tempo presente, e daí reconstroem o passado do personagem. Esses elementos são variados: objetos (as algemas de Kate, a cadeira de rodas de Locke, a revista em quadrinhos de Hurley), frases que se repetem nas duas instâncias temporais (“don’t tell me what I can’t do“, “The Red Sox will never win the series“), rimas visuais (Locke caído no chão, Michael e Walt), personagens que aparecem nos flashbacks uns dos outros. São todas peças que se encaixam, mas nem sempre da maneira que esperávamos (aliás, na maioria das vezes são revelações surpreendentes).

Nesse sentido, Lost reconfigura a todo momento nossas expectativas (a figura da caixa do quebra-cabeças – a imagem que esperávamos que ele fosse formar – muda a todo momento). Essa frustração se dá pela reorganização das peças de uma maneira inesperada (Kate fugitiva, Locke na cadeira de rodas, relação de Jin e Sun, Hurley milionário, a carta de Sawyer, etc.), o que cria os cliffhangers em torno dos quais a série muitas vezes se estrutura: a mensagem de Rousseau, a descoberta de que Ethan não estava no avião, a luz da escotilha se acendendo, os números na beira da escotilha…

Uma das representaçãos visuais mais contundentes e interessantes desse procedimento de reconstrução através do novo encadeamento de peças é a balsa que os personagens constroem para escapar da ilha. A metáfora é perfeita: as peças, os destroços do avião, são a matéria-prima a partir da qual os sobreviventes criarão sua maneira de sair da ilha. O que causou a tragédia traz a possibilidade de salvação (e esse conceito cresce e se aprofunda se aceitarmos a idéia de que foi a ilha que causou o acidente, mas também será ela que proporcionará a redenção para esses personagens). A balsa partindo me parece uma das imagens mais poderosas dessa primeira temporada: não só ela aponta para o uso de elementos da tragédia serem possíveis para a salvação, mas reorganiza esses elementos. Porque a balsa não seria possível apenas com o que restou do avião: é preciso utilizar matéria-prima da ilha – bambus, pedaços de madeira – para poder reunir essas peças numa nova configuração. Ou seja, a própria ilha, o próprio lugar que os prende é o lugar que lhes dá possibilidades de escapar.

Nessa primeira temporada, os tais cliffhangers que permitem a reorganização dos elementos de maneira surpreendente são de fato bastante orgânicos. Há a sensação de um mistério que não tem como ser conhecido ainda, porque não temos ferramentas para isso (nem os personagens), e porque existe algo (ou alguém) que nos impede de conhecê-los. Claro, os roteiristas deliberadamente escondem informações de nós, mas aqui isso faz sentido. Aqui ainda estamos no mesmo patamar que a maioria dos personagens, e por mais que inevitavelmente aos poucos ganhemos informações e nos desprendamos deles, nesse início a narrativa ainda é estritamente “como sobreviver neste lugar estranho”. Estamos presos ao entendimento que os personagens têm desse mundo.

Há um caso específico que me vem à mente. O episódio Walkabout, quarto dessa primeira temporada, é centrado em John Locke. Começamos a perceber aqui que ele possui algum tipo de comunhão especial com ilha, que aos poucos vamos aprendendo ser baseada puramente na fé. Como tal, essa comunhão passa longe de provas empíricas e se relaciona mais com um estado de espírito.

"I looked into the eye of this island, and what I saw... it was beautiful"

Por isso, não soa forçado que, quando John se encontra com o monstro em determinado momento do episódio, não nos seja permitido ver o que a criatura é efetivamente. Para além de interpretações de que nós somos o monstro, o que interessa aqui é que esse momento está além da representação visual. Não é assim que os mistérios devem ser respondidos. Pelo mesmo motivo, soa natural (e não um truque dos roteiristas para nos esconder “respostas”) que John não mencione seu encontro com o monstro a ninguém, e que depois se refira ao fato para Jack apenas como “I looked into the eye of this island, and what I saw… it was beautiful“.

[obs. 1: Também é interessante que não vejamos o monstro se considerarmos que ele tem formas e significados diferentes para cada um que o vê. Da mesma maneira, faz sentido que, quanto mais informação tenhamos acerca do monstro, mais nebulosa fique sua real natureza. Temos apenas uma multiplicidade de definições para ele, nenhuma sendo totalizante, nenhuma dando conta do que ele realmente possa ser. É um conceito meio parecido com o monstro de The Thing, filme do John Carpenter. E, nessa mesma toada, me parecem estar os números – são simplesmente uma metáfora para nossa tentativa de organizar o caos a nossa volta. Por isso que, da mesma forma que o monstro, aos números são atribuídos diferentes funções e sentidos, nenhum deles parecendo ser exatamente correto, mas todos fazendo algum sentido]

Claire sonha com Locke...

... e Locke sonha com Boone.

[obs. 2: Esse aspecto das perguntas que os personagens se fazem, e de como eles lidam com os mistérios, é um dos que mais se deteriorou desde a primeira temporada. Aqui, eles ainda estavam investidos em buscar respostas, em entender o que diabos estava acontecendo, por mais que o foco estivesse em sair da ilha. É irônico que, na mesma medida em que escapar foi gradativamente deixando de ser prioridade, o entendimento dos mistérios também deixou de ser uma preocupação para os personagens. A ligação de Locke com a ilha passa longe de ser algo racional (e que portanto possa ser explicado e mostrado em forma de “resposta para os mistérios”); Claire tem amnésia depois que escapa de seu captor; Rousseau perdeu boa parte da sanidade após 16 anos sozinha na ilha – todas ainda são desculpas coerentes (tanto que não soam como “desculpas” – a não ser, talvez, o negócio da amnésia) para que nós não tenhamos maiores esclarecimentos sobre os mistérios. Mas há um limite para nossa aceitação desses dispositivos, um limite que, se ultrapassado, compromete nosso envolvimento com os personagens. A partir do momento em que eles se recusam a dar quaisquer informações uns aos outros e, pior, a pedir quaisquer informações uns aos outros, a base necessária para a série funcionar é prejudicada. Mas lidemos com isso quando essas falhas aparecerem (mais notadamente a partir da terceira temporada). Por ora, a construção do suspense ainda é absolutamente bem trabalhada, e todas as ações dos personagens fazem sentido]

Outro ponto importante da série é a trilha sonora de Michael Giacchino. Muito do que há de épico em Lost vem da música arrepiante, emocionante, que ajuda a construir o sentido da narrativa tanto quanto qualquer outro elemento. Às vezes melodias sutis e calmas, às vezes sons cortantes e bruscos, a trilha quase sempre eleva e expande o sentimento inerente à cena; entretanto, há momentos em que a relação é dialética, sugerindo tensões por vir ou criando doçura em momentos sombrios.

Por fim, há diversas situações em que a música se confunde com o som ambiente; barulhos que não sabemos precisar se são parte da trilha sonora ou do mundo interno da narrativa. Essa situação fica mais evidente nas aparições do monstro, que são acompanhadas por uma banda sonora que é difícil de identificar. Essa sensação é amplificada pelo fato de que boa parte da percussão utilizada na trilha sonora foi feita com os objetos de cena usados como destroços do avião – asas de metal, tábuas, plásticos, e afins.

Há outros casos específicos na primeira temporada em que a música diegética (música tocada dentro da história que se conta) se transforma em trilha sonora. Quando Shannon canta a música La Mer, e aos poucos surge ao fundo uma melodia acompanhando-a. Ou quando Hurley ouve Delicate, de Damien Rice, em seu discaman – a música embala os momentos finais do episódio, tornando-se trilha sonora para as ações dos personagens; entretanto, ela é subitamente interrompida, e descobrimos que as pilhas do aparelho de Hurley apagaram.

4) A construção da narrativa em Lost.

A temporada tem um ritmo constante, sempre construindo calmamente os relacionamentos, dando o tempo necessário à evolução dos personagens.

Os nove primeiros episódios focam-se principalmente em estabelecer a relação de cada um dos personagens, tanto entre si como com a ilha. Jack assumindo a liderança, Locke provendo alimento com suas habilidades de caça, Sawyer causando desequilíbrio ao tomar certos itens para si, Sun e Jin sempre isolados, etc. Nesse sentido, a série ainda se aproximava do plano original de Jeffrey Lieber, primeiro roteirista do episódio piloto, cuja idéia girava apenas em torno de sobreviventes de um desastre aéreo em uma ilha (apenas depois da chegada de J. J. Abrams e Damon Lindelof que foram adicionados os elementos de mistério e de ficção científica, tornando a ilha um ambiente fantástico).

Nesse ponto da temporada, ainda há de fato um interesse maior em tentar diagnosticar como esse grupo de indivíduos bastante díspares consegue se reorganizar em uma espécie de simulacro diminuto de sociedade. Por isso, a mudança da praia para as cavernas não se trata apenas de se aproximar de uma fonte de água e de se proteger. Também é, de certa forma, uma questão política, em que as diferentes abordagens da situação estavam em jogo: de um lado, Jack, com seu instinto civilizador de liderança; do outro, Sayid e Kate ainda com esperanças de resgate, e principalmente Sawyer, dono de uma das falas mais emblemáticas desse início de série. “You’re just not looking at the big picture, Doc. You’re still back in civilization. (…) But me? I’m in the wild“.

Entretanto, esse tom realista vai se entremeando em diversos momentos com indícios de um mundo fantástico (Locke curado, Monstro, fantasma do pai de Jack, etc.), ao mesmo tempo em que começa a ser ventilada a hipótese de que haja outros habitantes na ilha. Essa constatação surge com força no episódio número nove, Solitary, no qual Sayid encontra Danielle Rousseau, a francesa que estava presa na ilha há 16 anos, e é confirmada ao final do episódio 10, Raised By Another, no qual a chegada de Sayid de volta ao acampamento para informar aos companheiros que ouviu vozes na selva coincide com a descoberta de Hurley. Ele fizera um censo para conhecer melhor os sobreviventes do desastre, e descobriu que Ethan Rom não estava na lista de passageiros do avião. E é também nesse final de episódio que Ethan, percebendo-se encurralado, seqüestra Charlie e Claire.

É nesse momento que a temporada tem uma mudança de ritmo, e o foco narrativo se desloca – e se multiplica. Agora, os personagens, além de conseguir sobreviver, precisam lidar com a possível presença de outros habitantes na ilha e tentar resgatar os seqüestrados. E uma descoberta de Locke e Boone – a famigerada escotilha no chão – dá corpo a um elemento fundamental em Lost: o fato de que o ambiente em que se passa é um dos principais personagens da trama. Ainda que seja também nesse trecho da temporada que Michael dê início ao projeto da balsa, cada vez mais o interesse está nos mistérios da ilha: a possível presença dos Outros, ocasionais aparições do monstro e a tentativa de se abrir a escotilha (que mais tarde também vai incluir o estranho avião bimotor que carregava traficantes de heroína nigerianos).

Com essa mudança de foco narrativo, o tom surreal também fica cada vez mais demarcado. Sonhos, alucinações, coincidências – um tom fantástico pronunciado que não se limita à ilha, mas por vezes também se estende aos flashbacks (particularmente no episódio Numbers, centrado em Hurley, cujo azar após ganhar a loteria é retratado de maneira absolutamente exagerada, e no episódio Special, em que ficam evidentes as capacidades sobrenaturais de Walt). Dessa maneira, a influência da ilha sobre os personagens se torna mais do que apenas no nível da sobrevivência. Começa a ser sugerida uma espécie de presença que aparentemente já se anunciava antes mesmo do desastre de avião.

No apartamento que Jin visita, há uma garota vendo Hurley na TV.

Entretanto, é interessante como esse elemento se apresenta. Cada vez mais, é o espectador que tem de fazer as ligações, que permanecem invisíveis aos personagens. É no final dessa temporada que nossa perspectiva se desprende da dos personagens, e o jogo narrativo fica evidente. A própria maneira pela qual a história é contada se impõe como elemento organizador: apenas nós vemos que Sawyer estava na mesma delegacia que Boone na Austrália, apenas nós vemos que a filha de um dos clientes que Jin tem de visitar estava vendo Hurley ganhar na loteria, etc.

Da mesma maneira, o season finale é exemplar nesse tipo de organização: os flashbacks, nesse momento, funcionam escancaradamente como dispositivo da narração, no sentido de que não são nem uma lembrança significativa vindo à tona, nem os personagens lembrando de algo por associação com o que ocorre na ilha. Trata-se pura e simplesmente de um elemento catalisador de emoções para quem assiste, e não para os personagens. Por ser o último episódio da temporada, os flashbacks estão aí para que analisemos a evolução desses personagens – como eles foram se tornando mais complexos do que uma visão superficial poderia sugerir. Não é que as experiências na ilha os tenha transformado em algo que não eram; é mais o caso de ela ter exigido que esses personagens mostrassem uma faceta que escondiam. Porque outro tema latente da série é o mantra “torna-te quem tu és“, ainda que não fique claro se cada um se tornou (ou está se tornando) a pessoa que estava destinado a ser ou a que escolheu ser. Além disso, claro, os cruzamentos entre personagens ocorridos no aeroporto e no avião de Sidney nos ajudam a entender o tipo de relação que desenvolveram (dentro do mesmo núcleo “familiar”, por assim dizer – como Shannon e Boone, Jin e Sun, e principalmente Walt e Michael; e uns com os outros – Shannon e Sayid, Locke e Jack, etc.).

Charlie precisa se arrastar por um buraco para vencer o vício e acreditar em si mesmo.

A maneira como se constrói esse episódio (Exodus) difere um pouco do que seria feito com os episódios finais nas temporadas seguintes. Como aqui o ritmo é naturalmente mais lento, as ameaças ainda não estão claras, o season finale parte de três linhas narrativas, duas que já haviam sido lançadas desde a metade da temporada e a outra que é criada no próprio episódio. Nas temporadas dois e três, por exemplo, tudo que será explorado no season finale começa a ser explorado três ou quatro episódios antes, a partir de subtramas que resolverão as questões maiores da temporada. Aqui, o episódio é a resolução natural dos três grandes eixos da temporada – escapar da ilha, abrir a escotilha e lidar com os Outros. Os dois primeiros itens não se dividiram em sub-tramas: a balsa para escapar da ilha está sendo construída há cerca de dez episódios, e as tentativas de abrir a escotilha não evoluiram tanto desde que ela foi encontrada.

O que dispara a resolução de tudo é a chegada de Rousseau dizendo que os Outros estão vindo para pegar Aaron, filho de Claire. O professor Arzt informa que está chegando a época de monções, e se a balsa não partir logo a maré não permitirá que eles naveguem. E, para o restante se proteger dos Outros, será preciso abrir a escotilha e esconder todos dentro. Numa só ação, juntam-se todas as linhas narrativas da temporada. E a maneira como elas são resolvidas estabelece perfeitamente o tom que será adotado na temporada seguinte.

A balsa é destruída pelos Outros, que raptam Walt e deixam Michael, Sawyer e Jin em situação complicada. A pretensão aqui é clara: deixem de lado, por ora, as esperanças de escapar da Ilha. Os Outros não vão deixar, e é preciso lidar com eles antes que se possa pensar em resgate. E, claro, uma das principais preocupações da segunda temporada será ir atrás de Walt e descobrir mais sobre os Outros. Entretanto, os acontecimentos do episódio mostram que essa não é a preocupação imediata: eles só queriam pegar Walt, e não Aaron. A “fumaça negra” que Rousseau mencionara indicando a chegada dos Outros fora acesa por ela mesma, num ato de loucura. Portanto, os Outros ainda irão se manter afastados por algum tempo.

O que se impõe no momento é a abertura da escotilha, o principal acontecimento do season finale e que vai definir completamente a narrativa da segunda temporada. Depois de acontecimentos surreais (um navio no meio da floresta cheio de dinamite, um encontro com o Monstro – cuja “forma” já começa a ser sugerida), Jack e Locke explodem a porta da escotilha. Nesse momento, a oposição entre o dois já foi explicitada: Jack é um homem da ciência, e Locke é um homem de fé. Essa dialética vai ser cada vez mais explorada daqui pra frente.

Tudo isso fica conjugado no sensacional plano que fecha a temporada: homem de ciência e homem de fé, olhando pelo buraco escuro, dando as costas para as tentativas de escapar e se aprofundando no mistérios da ilha, vendo algo que não vemos (nos é negada a visão do que há no buraco, e só saberemos na temporada seguinte), porque apenas na união dos dois é que é possível encontrar a resposta. Olhamos nos olhos do homem de ciência e do homem de fé, ambos perfeitamente enquadrados e unidos no mesmo plano, nos olhando de volta, nós e eles tentando entender o que estamos vendo: talvez a imagem mais representativa de Lost.

Episódios:

– 1×01: Pilot – Part 1 [Jeffrey Lieber and J. J. Abrams & Damon Lindelof / Dir.: J. J. Abrams] *****

– 1×02: Pilot – Part 2 [Jeffrey Lieber and J. J. Abrams & Damon Lindelof / Dir.: J. J. Abrams] *****

1×03: Tabula Rasa [Damon Lindelof / Dir.: Jack Bender] ***1/2

1×04: Walkabout [David Fury / Dir.: Jack Bender] *****

1×05: White Rabbit [Christian Taylor / Dir.: Kevin Hooks] ****

1×06: House Of The Rising Sun [Javier-Grillo Marxuach / Dir.: Michael Zinberg] ***1/2

1×07: The Moth [Paul Dini and Jennifer Johnson / Dir.: Jack Bender] ****

1×08: Confidence Man [Damon Lindelof / Dir.: Tucker Gates] ****1/2

1×09: Solitary [David Fury / Dir.: Greg Yaitanes] ***1/2

1×10: Raised By Another [Lynne E. Litt / Dir.: Marita Grabiak] ***1/2

1×11: All The Best Cowboys Have Daddy Issues [Javier-Grillo Marxuach / Dir.: Stephen Williams] ****

– 1×12: Whatever The Case May Be [Damon Lindelof and Jennifer Johnson / Dir.: Jack Bender] **1/2

1×13: Hearts and Minds [Carlton Cuse and Javier-Grillo Marxuach / Dir.: Rod Holcomb] ***

– 1×14: Special [David Fury / Dir.: Greg Yaitanes] ****

1×15: Homecoming [Damon Lindelof / Dir.: Kevin Hooks] ***1/2

1×16: Outlaws [Drew Goddard / Dir.: Jack Bender] *****

– 1×17: …In Translation [Leonard Dick and Javier-Grillo Marxuach / Dir.: Tucker Gates] ****1/2

1×18: Numbers [Brent Fletcher and David Fury / Dir.: Daniel Attias] ****1/2

1×19: Deus Ex Machina [Carlton Cuse and Damon Lindelof / Dir.: Robert Mandel] ****1/2

1×20: Do No Harm [Janet Tamaro / Dir.: Stephen Williams] ****

1×21: The Greater Good [Leonard Dick / Dir.: David Grossman] ***1/2

1×22: Born To Run [Adam Horowitz and Edward Kitsis / Dir.: Tucker Gates] ***

1×23: Exodus – Part 1 [Carlton Cuse and Damon Lindelof / Dir.: Jack Bender] *****

1×24: Exodus – Part 2 [Carlton Cuse and Damon Lindelof / Dir.: Jack Bender] *****

LOST (Primeira Temporada) **** [8,125]

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